sábado, 1 de agosto de 2015

Notações Para uma Futura Aula de Hermenêutica Bíblica ( III )

Da Incompreensibilidade de Deus em São João Crisóstomo
Diogo Santana[1]

São João Crisóstomo estabelece como temática de seus sermões a possibilidade de um conhecimento sobre o divino, fundamento de toda a teologia. Distingue evidentemente, o conhecimento que Deus tem de si do conhecimento que temos dele por intermédio de sua ação. Distingue essência divina de economia. Na primeira, é impossível qualquer conhecimento sobre o sagrado, desse modo, toda teologia (racionalização) consiste numa especulação sobre a economia, uma fenomenologia[2]. Uma preocupação comum à patrística alexandrina, por exemplo, ao vincular Cristo ao logos. Contudo, esse não é o caminho tomado por Crisóstomo em seu sermões, muito embora o considere válido. Seu interesse é demonstrar como qualquer especulação sobre a essência divina (como Deus conhece a si mesmo) é prepotência e por isso impiedade. Que essa essência se manifesta como vivência de amor em comunidade, na Igreja, e que não pode ser racionalizada. Essa experiência é a fé mesma. Sendo assim, não se pode separar fé de vivência de amor por Cristo em comunidade. E como vivência de amor leva em consideração sempre aquele que mais sofre.

Primeira Homilia
Há uma ordem espiritual que guia a Igreja. Consiste justamente na presença de seu pastor. Essa presença sobretudo é uma vivência. Deus existe porque nos aperfeiçoa no amor em comunidade[3], fundamento de toda a ordem[4]. E essa comunidade é a Igreja.

Com é isto? O Pastor ausente e as ovelhas em perfeita ordem! Grande feito do Pastor: o rebanho, não apenas em sua presença, mas até durante a ausência, demonstra ardente zelo! Efetivamente os animais irracionais, quando se ausenta o Pastor que os conduz às pastagens, devem necessariamente ficar dentro do cercado, ou, se vão sozinhas para fora do redil, põe-se a vaguear por lugares remotos. Aqui, porém, nada disso. Apresar da ausência do Pastor, chegastes às costumeiras pastagens, em perfeita ordem (17).

A manifestação de tal ordem na comunidade se fundamenta na caridade, prova definitiva da presença de Cristo, pois, “onde falta a caridade, as outras virtudes de nada nos servem, porque ela constitui a marca dos discípulos do Senhor” (18). Sendo assim, o amor sempre precede o conhecimento, tendo em vista que sempre o supera[5]. Só o amor em Cristo é perfeito. O conhecimento que temos dele porém, é infinitamente limitado:
Eu mesmo conheço muitas coisas cuja explicação ignoro. Por exemplo, sei que Deus está em toda a parte e todo inteiro em toda a parte; como está? Ignoro. Ele não tem começo nem fim, eu o sei, mas de que modo? Não sei. Realmente a razão não alcança ser possível a uma essência a existir sem receber o ser de si mesmo ou de outro princípio. Sei que ele gerou um Filho, porém, como? Ignoro. Sei que o Espírito procede dele, todavia como procede? Não sei. Eu absorvo os alimentos, mas de que maneira se diferenciam para se transformar em humor, sangue, linfa, bílis? Não sei. Dessa forma, ignoramos até mesmo o que vemos e comemos todos os dias, e tentamos conhecer a essência de Deus! (22).

Sendo o nosso conhecimento limitado, não é possível conhecer a Deus em sua essência, tendo em vista uma distância infinita entre nós e ele. Especular sobre tal essência constitui inevitavelmente um ato de impiedade, posto a afirmar algo sobre Deus que ele não é[6] posto que, “qual não será a loucura dos que julgam possível submeter a própria essência divina a seus raciocínios? (...) Igualmente o profeta, tendo-se inclinado sobre o oceano infinito e abissal da sabedoria de Deus, sente vertigens, exclamando: ‘Eu te celebro porque és admirado com temor; admiráveis são tuas obras[7]’ ” (23-24).
E não se diz limitado porque conheça uma parte da essência divina e não outra – pois Deus é simples -, mas porque sabe que Deus existe, e ignora qual sua essência; está ciente de que é sábio, e desconhece a extensão desta sabedoria; não ignora que é grande, e não conhece como, nem a natureza desta grandeza; conhece que está presente em todo o lugar, e não sabe como isso pode ser; não desconhece que ele prevê, sustenta e governa tudo, até os ínfimos pormenores, e ignora o modo como ele o realiza (27).

O que se deve levar em consideração para Crisóstomo, é a limitação de nosso conhecimento a respeito dos dogmas da fé a respeito da essência divina.

Segunda Homilia
A revelação que Deus faz de si mesmo se estabelece por fé e não por razão, sendo assim, cabe ao homem silenciar-se diante dela, em humildade reconhecendo suas limitações:

Quando Deus revela, importa aceitar sua palavra, sem nos imiscuirmos audaciosamente em questões ociosas (...) Que direi? Acusam-me de ímpio; até me chamam de louco em Cristo. Alegrar-me-ei também com isso, como se fosse coroado visto que partilharei este apelativo com Paulo. Pois, efetivamente este declarou: ‘Somos loucos por causa de Cristo’. Esta loucura é mais racional que toda espécie de sabedoria. Ora, o que a sabedoria do mundo não pudera descobrir, a loucura por causa de Cristo o alcançou com êxito. Dissipou as trevas terrenas e restaurou a luz do conhecimento. Mas, o que significa ser louco por causa de Cristo? Significa apaziguar nossos pensamentos a divagarem de maneira inoportuna, esvaziar a mente, livre do saber mundano, a fim de receber os ensinamentos de Cristo, disponível, como que bem varrida, a acolher as palavras divinas. Ao revelar Deus uma verdade que não deve ser investigada indiscretamente, importa recebe-la com fé. A propósito de tais revelações, querer inquirir as coisas, proceder a verificações, procurar saber como se realizarão, é peculiar à alma repleta de insolência e temoridade. Tento novamente demonstrá-lo a vós, baseado nas próprias Escrituras (34-35).

É possível contudo, identificar essa limitação da razão à fé em Orígenes. Segundo Orígenes, a tradição se justifica na tradição apostólica, onde é possível determinar verdades absolutamente certas a respeito de Deus e do homem, determinando uma dogmática. Essas verdades são axiomáticas por natureza e por isso longe de toda especulação. Esse é o caminho tomado por São João Crisótomo. O que não está claro na pregação apostólica é perfeitamente aberto a um diálogo e divergência de posições, o que não interesse a Crisóstomo.

Propomo-nos demonstrar ser imperdoável procurar indiscretamente saber de que modo se realizarão os oráculos divinos; em vez disso, essas revelações devem ser recebidas com fé (...) Quando Deus fala, não é lícito argumentar, nem contrapor a sequencia dos fatos ou as forçosas leis da natureza, nem algo de semelhante, porque a força da palavra divina é superior a tudo isso e nenhum obstáculo o retém (...) Zacarias nada afirmou. Queria somente saber e não obteve perdão; e tu, que te empenhas por conhecer até mesmo o que é impossível a todos contemplar e compreender, de que maneira te defenderás? Que castigo não atrairás contra ti mesmo? (36-37).

Que afirma conhecer a Deus em sua essência mente, pois, “apesar de tantas e tamanhas palavras, ainda existem os que vencem o diabo em vanglória” (39). Há portanto, uma confusão de categorias, fundamento de todo pecado e idolatria segundo São Atanásio, pois aquele que conhece o absoluto, é maior que ele, o que é inverossímil.

Um homem que ousou afirmar que: ‘Eu conheço a Deus como Deus mesmo se conhece’. Será preciso refutar tal afirmação? Exige provas do contrário? Só o fato de pronunciar essas palavras não basta para manifestar a impiedade que contêm? É evidente loucura, demência imperdoável, espécie inteiramente nova de impiedade; ninguém jamais teve a audácia de revolver algo de semelhante na mente ou exprimi-lo com a língua (38).

Confiar na palavra divina consiste na humildade exigida que identifica quem o homem é, e quem Deus é. Não se trata porém, de uma castração da liberdade de pensar, mas sim de um combate a arrogância, pois é evidente que entre Deus e o homem se estabelece uma distância infinita, que apenas é reconhecida pela obediência:

Pois a distância entre o homem e Deus é análoga à que separa a argila do oleiro, ou antes, não é análoga, mas muito maior (...) Se o homem parece superior à argila e mais belo, a diferença não provêm de desigualdade relativa à natureza, mas da perícia do artífice, pois em nada te distingues da argila (...) Não há diferença entre argila e oleiro, enquanto entre a essência de Deus e a dos homens a diferença é tal que não pode ser expressa pela palavra, nem medida pelo pensamento. Da mesma forma que a argila obedece às mãos do oleiro, seja como for que a torneie e a modele, hás de ficar mudo como a argila quando Deus quiser realizar algum designo seu (44).

A revelação de Deus não constitui porém, uma categoria do conhecimento, até mesmo da conduta, moral, mas sim de fé, e por isso, de confiança no dogma, na tradição recebida pela Igreja da pregação apostólica, pois “Não é, pois, a argumentação, assegura ele {Paulo}, que vos ensinará, e sim Deus, que vos há de revelar. Vês bem que não se trata de comportamento ou gênero de vida, mas de doutrina e fé. Pois não são a conduta e o gênero de vida que exigem revelação, mas a doutrina e conhecimento” (48).

Terceira Homilia
A terceira homilia trata-se especificamente da distância radical e infinita entre Deus e os homens, como característica fundamental do próprio mistério que é Deus. Trata portanto, da incompreensibilidade como elemento da transcendência:

Ora, não é arrogância afirmar que o artífice está acima da compreensão de todos os seres criados; ao contrário, sê-lo-ia assegurar que possam os que rastejam sobre a terra, muito inferiores às virtudes do alto, circunscrever e compreender com seus fracos raciocínios o ser incompreensível àquelas virtudes (...) De fato, diz-se que algo é incompreensível quando os que o examinam não conseguem apreendê-lo, apesar das pesquisas e buscas. Inacessível, porém, é o que desde o início se furta a qualquer investigação, sequer permite aproximação (53-55).

Como ser transcendente, Deus está acima de toda a linguagem, seja de louvor ou repúdio a ele. Entretanto, todo louvor ou repúdio se manifesta necessário como expressão de salvação ou perdição dos homens[8]. A transcendência radical de Deus constitui característica de sua impassividade. Não há nada entre os homens que afete a Deus. Deus age por amor, isto é, por afetação a si mesmo, tendo em vista a salvação dos homens, pois, “Por causa dele, portando, e de sua glória, ou melhor, por nossa salvação, despendemos esses esforços. De fato, é tão impossível, bendizendo, aumentar o esplendor de Deus, quanto prejudica-lo ultrajando-o. Ele permanece imutável em sua glória” (52).

Quarta Homilia
A quarta homilia trata especificadamente da incompreensibilidade de Deus para toda a criação, não apenas para seres humanos, o que inclui os anjos e todas as hierarquias celestes: 
 Invoquemo-lo, portanto, como o Deus inexprimível, inconcebível, invisível e incompreensível. Ele ultrapassa a força da linguagem humana e escapa ao alcance da inteligência de qualquer mortal; não podem os anjos investiga-lo, nem os Serafins contemplá-lo, nem os Querubins compreendê-lo; é invisível aos Principados, às Potestades, às Virtudes e a todas as criaturas sem exceção; somente o Filho e o Espírito Santo o conhecem (53).
Qualquer criatura está a uma distância infinita de seu criador, posto que é criado por ele.

Quinta Homilia
Por fim, a última homilia trata especificamente de Jesus Cristo como imagem e manifestação do Deus incompreensível e inacessível. Diante da própria limitação humana em se aproximar e da impiedade e soberba em tentar compreender a essência divina, o próprio Criador torna-se homem e manifesta-se aos homens. Crisóstomo determina portanto, a igualdade de natureza entre o Pai e o Filho:

Se deus ao Pai o nome de Deus único, não quis apartar-se o Filho da divindade, e igualmente, se deu ao Filho o nome de único Senhor, não foi por pretensão de retirar do Pai o Senhorio (...) ‘Quem, pois, dentre os homens, conhece o que é do homem, senão o espírito do homem, que nele está? Da mesma forma, o que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus’. E o filho disse também: ‘Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e quem é o Pai senão o Filho’. E igualmente noutra passagem: ‘Não que alguém tenha visto o Pai; só aquele que vem de junto de Deus viu o Pai. Indica também simultaneamente  a perfeição com o qual ele conhece o Pai e a razão pelo qual ele o conhece (90-91).

Cristo é a revelação de Deus, contudo, não expressa um conhecimento total da divindade incompreensível, mas antes, uma revelação adequada a nossa razão e capacidade de conhecer a Deus. Em outros termos, de que Deus ao assumir a natureza humana, determinou uma paridade com o homem de tal maneira a adequar até mesmo a razão humana à uma determinada medida para compreender a Deus. Deus se torna homem para que o homem compreenda Deus a partir de suas limitações humanas, ou seja, de maneira humilde:

Se Deus impediu este conhecimento foi para nos fechar a boca e conter-nos mais facilmente, a fim de nos ensinar a permanecer em nossa pequenez, não querer perscrutar o que está acima de nós e desistir de uma curiosidade indiscreta (...) E ele não revela tudo o que sabe; somente o quanto somos capazes de receber (92-93).

A humildade em reconhecer as limitações da razão, assim como, reconhecer em Jesus Cristo como a revelação de Deus adequada ao limite de nossa razão, determina tanto uma compreensão de razão, fé e natureza humana. A razão não é contrária a fé, mas é a fé que determina os limites da racionalidade humana, o que é perfeitamente concebível, posto que, a razão, sendo humana, é limitada como o homem, e a fé, sendo dom de Deus, e portanto divina, é eterna e infinita como Deus é. É nesse aspecto que a fé é axiomática e a razão não pode determinar um parâmetro para a fé. Compreender a essência divina por intermédio da razão constitui uma confusão de categorias: é fazer da razão eterna e da fé uma categoria limitada.

O reconhecimento das limitações da razão, apenas determina as limitações de toda a natureza humana. É assim que o homem se reconhece pecador e reconhece em Cristo, enquanto manifestação do Criador, o seu salvador. Salvador da natureza humana, mas também da racionalidade, adequada humildemente a imanência:
Eu te peço, pois, suplico e conjuro. Confessa sem cessar tuas faltas a Deus. Não quero te levar a um teatro diante de teus infelizes companheiros e não te obrigo de forma alguma a manifestar teus pecados aos homens. Revela tua consciência a Deus, mostra-lhe tuas feridas e dele implora os remédios; dirigi-te a ele, não como a um censor, mas como a um médico. Alias, apesar de te calares, ele tudo conhece. Fala, portanto. Fala a fim de que, depondo todos os pecados, dali te retires puro e libertado do que cometeste, e assim isento do ônus intolerável duma confissão pública (...) Ele nos atrai a si. Não escapemos dele. Se nossos pecados são inúmeros, empenhemo-nos em correr para ele, são a tais que ele chama, pois assegura: ‘Eu não vim chamar justos, mas pecadores’, para que se arrependam. Aponta assim para os que carregam pesados fardos, os que estão sofrendo, os esmagados sob o peso dos seus pecados. Ele é denominado o Deus da consolação, Deus das misericórdias, pois continuamente opera, consolando, encorajando os doloridos e aflitos, mesmo se cometeram milhares de pecados (101e103).

As limitações da razão apenas expressam as limitações do homem por inteiro. Expressam sua fragilidade e a necessidade de plenitude de seu ser. Isso significa buscar conhecer. Contudo essa busca é insaciável e não alcança termo. Apenas inquieta a alma e a desespera em prepotência, onde o homem é concebido como um absoluto. Reconhecer as limitações da razão é o primeiro passo para aquietar o ser, e por isso também da plenitude. A exigência é que a razão encontre o seu limite, esse limite é Cristo. Diante de Cristo a razão deve silenciar. Isso é fé e nela o homem encontra a sua totalidade.

Bibliografia
CRISÓSTOMO. João. Da Incompreensibilidade de Deus. Coleção Patrística. Ed. Paulus. 2007.



[1] Diogo Santana é graduando em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Email: diogosantana45@yahoo.com.br .
[2] Um exemplo bem típico é a teologia de São Atanásio.
[3] A existência de Deus, portanto, consiste na expressão de uma prática de amor, exclusiva entre os cristãos.
[4] Para São João Crisóstomo, o amor fundamenta a ordem. O mesmo pode ser afirmado de São Atanásio, para quem a encarnação, enquanto ato de amor divino, restabelece a ordem universal perdida com a queda.
[5] Cf. Ef. 3.19.
[6] Pseudo-Dionísio Aeropagita seguirá justamente o caminho apofágico (negativo e místico) como acesso possível a um conhecimento sobre o sagrado.
[7] Cf. Sl. 138.14.
[8] De maneira que a intensidade da oração e a sua regularidade, tornam desnecessários os intermediários: “ Se te acostumas a rezar com fervor, não terás necessidade de ser instruído por outros servos de Deus, o qual, sem intermediários, iluminará ele próprio teu espírito” (63). Entretanto, isso não elimina em hipótese alguma a vida cristã em comunidade, pois “Ao invocares o Senhor particularmente não és atendido tão bem como na companhia dos irmãos. Aqui existe algo mais, a saber, a concordância dos espíritos e a unanimidade das vozes, o nexo da caridade e as orações sacerdotais” (63). 

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