sábado, 1 de agosto de 2015

Notações Para Uma Futura Aula de Hermenêutica Bíblia ( II )


A Encarnação do Verbo Segundo Atanásio
Diogo Santana[1]
Resumo

É reconhecido no dogma da encarnação uma das mais contundentes justificativas para uma doutrina cristã. A encarnação formaliza as bases para uma infinidade de outros dogmas, dentre elas, a natureza de Jesus, sua filiação divina, seu propósito soteriológico e escatológico.

A Instituição da Idolatria

Em seu livro Refutação da Idolatria, Atanásio fundamenta toda sua argumentação na identidade entre criador e criatura, na filiação divina entre Deus e o homem.
Por sua semelhança com ele, o tornou capaz de contemplar e conhecer os seres, deu-lhe a idéia e o conhecimento de sua própria eternidade, a fim de que, conservando a sua integridade, o homem não mais se afaste do pensamento de Deus e não se distancie da comunidade dos santos, mas que, conservando a graça que recebeu de Deus, conservando também o próprio poder que lhe vem do verbo do Pai, ele viva, na alegria e na intimidade com Deus, uma vida sem inquietude e verdadeiramente feliz, uma vida imortal (47).
Essa identidade constitui uma unidade, que Atanásio identifica na imortalidade, na intimidade com Deus e na comunidade com os santos. O homem originalmente está integrado à toda a criação, e como emana de Deus é eterno com ele. O conceito de pecado, em Atanásio, constitui o drama cósmico de desarticulação ontológica entre o homem, Deus e toda a criação. Sendo assim, a unidade cede à pluralidade, o espírito cede ao sensível, o eterno ao que é transitório e imediato.

Mas os homens, negligenciando as realidades superiores e lentos para compreende-las, procuraram de preferência aquelas que estavam mais próximas deles. Ora, o que está mais próximo, é o corpo e seus sentidos: assim desviavam o seu espírito dos inteligíveis e se olharam para se considerarem eles próprios. Considerando-se a si próprios, apegando-se aos seus corpos e às outras coisas sensíveis, e enganando-se, por assim dizer, na sua própria causa, chegaram a se desejar a si próprios, preferindo o seu próprio bem à contemplação das realidades divinas. Eles permaneceram aí, recusando a se afastar dos prazeres imediatos, aprisionaram a sua alma nas volúpias corporais que a deixaram perturbada e enlameada em toda a espécie  de desejos; porque eles haviam completamente esquecido o poder que no início tinham recebido de Deus (49)

Desarticulado do mundo e de Deus, mas ainda neles. Essa é a condição desesperadora de uma humanidade que para garantir algum sentido em viver, torna absoluto o que é relativo, e por isso, vive radicalmente suas paixões. Essa é segundo Atanásio, a origem da idolatria. Sendo porém de origem ontológica, é inevitável que para o teólogo, todo homem seja naturalmente e universalmente um idólatra. Tornar absoluto o que é relativo, uno ao que é múltiplo, fazer do espiritual o que é sensível, isto é para Atanásio, criar um ídolo. Confusão de categorias.  

Assim, repleta de todas as espécies de desejo carnais e perturbada pela falsa opinião que forma para si própria, conclui por imaginar segundo as coisas corporais e sensíveis a Deus de cujo pensamento esqueceu, e dá às aparências o nome de Deus; só aprecia o que quere tem como agradável. É então o mal que é a causa e o princípio da idolatria (56).

A partir de tal constatação, se propõe a determinar as formas pelos quais a idolatria se manifesta em sua complexidade: adoração da natureza, de seres híbridos, dos deuses e dos próprios desejos humanos. Sendo toda idolatria, uma confusão de categorias, o que Atanásio faz é restabelecer argumentativamente a condição de relativo, múltiplo e sensível dos seres antes divinizados. Nesse aspecto, sua teologia não difere em nada de uma proposta de laicização[2].

A forma mais rudimentar de idolatria consiste na veneração dos entes naturais:

O espírito humano apenas começara a se afastar de Deus, quando os homens mergulhando nos seus pensamentos e raciocínios, renderam as honras divinas primeiramente ao firmamento, ao sol, à lua e aos astros, consideraram-nos não apenas como deuses, mas como a causa de todos os outros seres que viam entre eles. Depois continuaram a descer em seus tenebrosos raciocínios chamaram deuses o éter, o ar e os seres aéreos. Progredindo ainda no mal, cantaram como deuses os elementos e os princípios da constituição dos corpos, o quente e o frio, o seco e o úmido (57).

Outra espécie de idolatria consiste na veneração reificada de seres andrógenos, entre homens e animais:
 Porque alguns desceram tão baixo em seus pensamentos e obscureceram de tal modo o seu espírito, que inventaram seres que absolutamente não existem e que não se veem na criação, para fazer deles deuses. Misturando os seres racionais aos seres desprovidos de razão, e ligando juntamente naturezas diferentes, honram-nos como deuses: tais são entre os egípcios, os deuses de cabeça de cão, de serpente ou de burro, e entre os líbios Amon, o deus de cabeça de carneiro (57-58).

Tal como numa progressão, chega-se aos desejos humano, pois  “outros, indo mais longe em sua impiedade, divinizaram o que fora o pretexto de sua invenção e de sua maldade, o prazer e o desejo, e eles os adoram: tais são entre eles o Eros, e o Afrodite de Pafos” (58). Por fim, a reificação dos desejos, inevitavelmente estabelece a divinização do próprio homem. Contudo, segundo Atanásio, os deuses nada mais são do que homens divinizados por poderosos (nobres em sua maioria), estabelecendo sua devoção pública por meio de leis, que com o tempo, se adequam ao costume cultural:
Alguns, como se quisessem rivalizar com os mais perversos, tiveram a audácia de pôr na fileira dos deuses os príncipes e seus filhos, seja por veneração para com estes príncipes, seja por medo de sua tirania; assim entre os gregos o célebre Zeus de Creta, e Hermes na Arcádia, entre os indianos Dionísios, entre os egípcios Ísis, Osíris e Horo, e nos nossos dias Antinou, o favorito do imperador romano Adriano; eles sabem bem que era homem, e homem pouco respeitável, e cheio de libertinagens, e portanto eles o veneram por medo do chefe (58).

A saudade de quem amamos também é um instrumento para a criação de deidades:   

Um pai aflito por um luto prematuro mandou fazer a imagem do filho que tão cedo lhe tinha sido arrebatado, e  este ser humano que estava morto, ele o honra como se estivesse vivo e transmitiu aos seus servos mistérios e iniciações. Em seguida, este costume ímpio, firmando-se com o tempo, foi observado como lei (61).

Por fim, estabelece a contestação, porém, seguindo a ordem inversa no qual fora exposta anteriormente. Os deuses nada mais são do que homens divinizados, mas não qualquer homem, mas sim, os mais imorais dentre eles:
Verdadeiramente é justo considera-lo como Deus, um ser que cometeu tão grandes crimes, e que é acusado de coisas que até as leis comuns dos romanos não permitiam aos que são homens? Visto que seus crimes são tão numerosos não evocarei senão alguns entre muitos outros. Vendo-o seduzir criminosamente Semele, Leda, Alcmene, Ártemis, Leto, Maia, Europa, Danae, Antíope, ; e vendo os seus empreendimentos audaciosos a respeito de sua própria mulher, quem não zombaria dele e não o condenaria a morte? E não somente ele cometeu adultérios, mas elevou à classe dos deuses as crianças nascidas de seus adultérios, procurando velar os seus crimes sob a aparência desta divinização: tais são os Dioninos, Héracles, os Dióscuros, Hermes, Perseu e Soteira (...) quem não condenaria a sua natureza e não recusaria dizer que ainda são deuses? E sabendo que são corruptíveis e passíveis, avaliaria que são apenas homens, e homens fracos e admiraria os que os feriram mais que os próprios feridos (63-64).

Os deuses, por serem homens e homens sem virtude, tornam-se paradigmas éticos para toda uma cultura, que para Atanásio corresponde a um risco social:

Eis o que fazem, e outras coisas do mesmo gênero e por este meio reconhecem e demonstram que os seus supostos deuses levaram a mesma vida. É de Zeus que eles aprendem a pederastia e o adultério, de Afrodite a prostituição, de Rhéa a impudícia, de Ares os homicídios, e de outros, crimes do mesmo gênero que as leis punem e que todo homem sábio evita. Os que fazem isso são dignos de estar na categoria dos deuses, e não seria mais necessário, por causa da imoralidade da sua conduta, os considerar menos racionais que os animais sem razão? (82).

Contestando a divinização dos homens, Atanásio se propõe a contestar a divinização da natureza. O argumento principal consiste na afirmação de que a divinização da natureza implica a autonomia de cada fenômeno natural em relação ao restante do meio, e assim sendo , ao caos absoluto, o que é inverossímil com a realidade:
Esses pretensos sábios se afastam dele para adorar e divinizar a criação que é sua obra que ela mesma adora o Senhor que eles negam por causa dela. Eles ficam assim de boca escancarada perante os elementos da natureza e pensam que são deuses; mas poder-se-ia facilmente confundi-los mostrando-lhes que estes mesmos elementos têm necessidade uns dos outros, e que fazem conhecer e manifestam o seu Senhor e criador, o Pai do verbo, pela ordem absoluta de sua obediência para com ele (84).

A ordem presente no Cosmos implica uma dependência mútua entre os fenômenos naturais, e desta, uma ordem fundada por uma mesma intensão, consciência e ser, por um mesmo Deus.
   
A Encarnação do Verbo
A refutação do politeísmo em Atanásio estabelece uma defesa do monoteísmo cristão (trinitário). A contestação do que não é Deus, a uma defesa de quem Deus seria. Sendo o pecado do ponto de vista ontológico uma confusão de termos, e inevitavelmente a um equívoco a respeito de quem é Deus (idolatria), Atanásio se propõe a uma reabilitação dessas categorias a fim de justificar como estas se relacionam adequadamente a fim de determinar a encarnação. A encarnação seria a adequada relação entre as categorias do tempo e da eternidade, do finito e do infinito, do absoluto e do relativo, mas não sua confusão, origem de toda idolatria.
Para tanto, reconhece que o conhecimento de um ser eterno, apenas se torna possível por um atributo eterno no homem, tal como as coisas finitas se conhecem por intermédio de atributos finitos (sentidos). Defende, portanto que o homem é por natureza uma síntese entre finito e infinito, e que o conhecimento de Deus parte inevitavelmente do conhecimento da alma. A alma para Atanásio é racional e independente dos sentidos. Daí se concluir sua filiação divina e imortalidade. Sua paridade definitiva com o criador:
Do mesmo modo que, o corpo sendo mortal, os seus sentidos contemplam coisas mortais, assim a alma que contempla realidades imortais e raciocina sobre elas, deve necessariamente ser imortal e viver eternamente (94). 

Outro meio possível para o conhecimento de Deus se estabelece no reconhecimento da ordem da criação, que implica necessariamente uma intenção, um ser, um Deus:

Concluímos que há no corpo uma alma que comanda os membros, também se não a vemos. Assim, a ordem e harmonia do universo levam necessariamente a conceber um Deus que comanda todas as coisas, e um Deus único e não múltiplo. Porque a própria disposição desta ordem e a harmoniosa concórdia do universo mostram a existência do Logos que o comanda e dirige, e não de muitos, mas de um só (102).

Esse Deus único criou o homem do nada ao ser. Ausente de seu fundamente e voltando-se para o múltiplo, o sensível e o transitório, o homem regressa do ser ao nada, estabelecendo a sua mortalidade:
A transgressão ao mandamento os reconduziu ao seu estado natural, e assim como haviam passado do nada ao ser, era justo que doravante fossem sujeitos no decurso do tempo à corrupção, propensa ao nada. Uma vez que antes nada era por natureza, e a presença e a filantropia do Verbo os chamou ao ser, consequentemente alheios ao pensamento de Deus, e voltados para o nada (pois o mal é não-ser, e o bem é ser, saído das mãos de Deus, que é), os homens foram privados do ser, que seria eterno (128-29).

Sendo assim, o homem que era imagem e semelhança de Deus, se torna imagem e semelhança do nada, isto é, de qualquer coisa, pois “a morte exercia cada vez mais seu poder e a corrupção subsistia no meio dos homens. Desta forma, o gênero humano encaminhava-se para a perda. O homem racional, criado à imagem do Verbo, desaparecia e a obra de Deus ia se arruinando” (131).

A encarnação do Verbo torna-se portanto um instrumento divino para a aniquilação da morte e o regresso do homem do nada para o ser, da mortalidade para a imortalidade, da corrupção para a incorrupção. Um regresso ontológico ao Éden.

O Verbo, portanto, compreendia que a corrupção dos homens de forma alguma poderia ser destruída, a não ser pela morte. Mas, era impossível que o Verbo morresse por ser imortal, ele, do Pai o Filho. Por isso, assume corpo mortal, a fim de que este, participe do Verbo, superior a tudo, seja capaz de morrer por todos, e graças ao Verbo que nele habita, permaneça incorruptível e doravante faça cessar em todos a corrupção pela graça da ressurreição (135).

Esse tipo de constatação é inverossível a compreensão humana, dada a distância entre criador e criatura. Cristo portanto, se torna o modelo de homem renascido à imagem e semelhança de Deus que deve ser imitado.
De fato, Deus é incriado, os homens foram criados do nada. Deus é incorpóreo e os homens foram dotados de corpo. Em resumo, é muito grande a incapacidade da parte das criaturas de compreender e conhecer o criador. Deus porém, em sua bondade, teve ainda compaixão do gênero humano, e não deixou os homens privados deste conhecimento, a fim de não julgarem, por sua vez, inútil a existência (138).
Que seria então necessário que Deus fizesse? Sim, que devia fazer, a não ser renovar o que era segundo a imagem de Deus, a fim de que por meio dele os homens pudessem ainda conhece a Deus? E como se faria isso, a não ser pela presença da imagem do próprio Deus, nosso salvador Jesus Cristo? De fato, tal coisa não era viável aos homens, apesar de terem sido criados segundo a imagem. Nem aos anjos, uma vez que eles não são imagens. Por isso o Verbo de Deus veio ele próprio, a fim de que , sendo a imagem do Pai, possa re-criar o homem segundo a imagem (142-143).



Contestação das Oposições Judaica e Grega

Atanásio reconhece a autoridade da Escritura hebraica como profética e messiânica. Sua intensão nesse reconhecimento consiste em identificar na figura humilde de Jesus de Nazaré, o Verbo divino através das profecias bíblicas: de que a encarnação é por natureza a consumação na história de toda a dinâmica profética contida nas Escrituras. Sendo assim, a rejeição judaica a Jesus como messias é desprovida de fundamento:
A quem, pois, assim as Escrituras Sagradas se referem? Quem é este ser tão grande do qual os profetas anunciam coisas tão prodigiosas? Nenhum outro se encontra enquanto tal nas Escrituras, a não ser nosso Salvador comum, o Verbo de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo. É procedente da virgem, apareceu qual homem na terra aquele cuja geração segundo a carne é inenarrável. Com efeito, não se lhe atribui um pai segundo a carne, porque seu corpo não provêm de homem e sim apenas de virgem (174).
Pura invenção dos judeus, portanto, que transferem para o futuro fatos presentes. Quando cessaram em Israel profeta e visão, a não ser quando apareceu o santo dos santos, o Cristo? Sinal e marca considerável da presença do Verbo de Deus era não substituir Jerusalém, não surgir profeta algum, nem revelação por meio de visão. E era perfeitamente exato. Pois, tendo chegado o que os sinais prenunciavam, que necessidade ainda havia destes sinais? Ao aparecer a realidade, para que ainda as sombras? Por esta razão, os profetas falaram até que chegasse a própria justiça, quem redime os pecados de todos. Jerusalém perdurou muito a fim de que os judeus ali considerassem as figuras da realidade futura (178).

Contra os gregos porém, Atanásio justificava a relação do logos universal com o homem particular Jesus Cristo. Em primeiro lugar porque se o verbo habita o todo, inevitavelmente estaria em suas partes, logo, também no homem, posto que “De igual modo, quem concede e crê estar o Verbo de Deus presente no mundo inteiro, ser o universo iluminado e movido por ele, não se admira de que ilumine e mova um corpo humano” (182). Segundo, porque para aproximar-se do homem e interagir com ele, Deus tornou-se homem também, estabelecendo uma paridade, pois “ segue-se que o médico e salvador devia aproximar-se das criaturas para curá-las. Por isso, ele se fez homem e empregou o corpo humano, qual instrumento” (185). Por fim, Deus ao tornar-se homem, corpo e matéria, os diviniza, os deifica, os aproxima dele:

Ele se fez homem para que fossemos deificados, tornou-se corporalmente visível, a fim de adquirirmos uma noção do Pai invisível. Suportou ultrajes da parte dos homens, para que participássemos da imortalidade. Com isso nenhum dano suportou, sendo impassível e incorruptível, o próprio Verbo e Deus. Mas em sua própria impassibilidade guardou e preservou os homens sofredores, em prol dos quais tudo isso suportara (198).

Conclusão

É inegável a importância da figura de Atanásio no primeiro concílio ecumênico da Igreja em 325. Onde se tratou fundamentalmente em se estabelecer uma oposição ao movimento ariano que negava a identidade entre Deus Pai e o Filho. De que o Filho enquanto enviado do Pai, era criado por ele e sendo assim, não era co-eterno, assumindo desse modo a posição privilegiada de ser a primeira de todas as criaturas e por isso superior a todas as outras, mas ainda sim, sujeita e inferior ao Pai. É nesse aspecto que Jesus e Deus se distinguem, e que Atanásio se estabelece contra. A unidade entre o Pai e o Filho é fundamental para a própria salvação da humanidade decaída, doutro modo não poderia haver proximidade entre um Deus infinitamente transcendente e um homem radicalmente imanente (pecador). Sendo assim, Atanásio leva às últimas consequências as palavras do apóstolo São Paulo: “Porque há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem”[3].

Biografia
ATANÁSIO. São. Contra os Pagãos. Ed. Paulus. 2012.
_________. São. A Encarnação do Verbo. Ed. Paulus. 2012.



[1] Diogo Santana é graduando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Email: diogosantana45@yahoo.com.br .
[2] Uma laicização que não é radical, tendo em vista ainda, o Uno, este sim, sagrado e imortal.
[3] 1 Tm. 2.5. 

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