Da Incompreensibilidade de Deus em
São João Crisóstomo
Diogo
Santana[1]
São
João Crisóstomo estabelece como temática de seus sermões a possibilidade de um
conhecimento sobre o divino, fundamento de toda a teologia. Distingue
evidentemente, o conhecimento que Deus tem de si do conhecimento que temos dele
por intermédio de sua ação. Distingue essência divina de economia. Na primeira,
é impossível qualquer conhecimento sobre o sagrado, desse modo, toda teologia
(racionalização) consiste numa especulação sobre a economia, uma fenomenologia[2]. Uma
preocupação comum à patrística alexandrina, por exemplo, ao vincular Cristo ao
logos. Contudo, esse não é o caminho tomado por Crisóstomo em seu sermões,
muito embora o considere válido. Seu interesse é demonstrar como qualquer
especulação sobre a essência divina (como Deus conhece a si mesmo) é
prepotência e por isso impiedade. Que essa essência se manifesta como vivência
de amor em comunidade, na Igreja, e que não pode ser racionalizada. Essa
experiência é a fé mesma. Sendo assim, não se pode separar fé de vivência de
amor por Cristo em comunidade. E como vivência de amor leva em consideração
sempre aquele que mais sofre.
Primeira Homilia
Há
uma ordem espiritual que guia a Igreja. Consiste justamente na presença de seu
pastor. Essa presença sobretudo é uma vivência. Deus existe porque nos
aperfeiçoa no amor em comunidade[3],
fundamento de toda a ordem[4]. E
essa comunidade é a Igreja.
Com
é isto? O Pastor ausente e as ovelhas em perfeita ordem! Grande feito do
Pastor: o rebanho, não apenas em sua presença, mas até durante a ausência,
demonstra ardente zelo! Efetivamente os animais irracionais, quando se ausenta
o Pastor que os conduz às pastagens, devem necessariamente ficar dentro do
cercado, ou, se vão sozinhas para fora do redil, põe-se a vaguear por lugares
remotos. Aqui, porém, nada disso. Apresar da ausência do Pastor, chegastes às
costumeiras pastagens, em perfeita ordem (17).
A
manifestação de tal ordem na comunidade se fundamenta na caridade, prova definitiva
da presença de Cristo, pois, “onde falta
a caridade, as outras virtudes de nada nos servem, porque ela constitui a marca
dos discípulos do Senhor” (18). Sendo assim, o amor sempre precede o
conhecimento, tendo em vista que sempre o supera[5].
Só o amor em Cristo é perfeito. O conhecimento que temos dele porém, é
infinitamente limitado:
Eu
mesmo conheço muitas coisas cuja explicação ignoro. Por exemplo, sei que Deus
está em toda a parte e todo inteiro em toda a parte; como está? Ignoro. Ele não
tem começo nem fim, eu o sei, mas de que modo? Não sei. Realmente a razão não
alcança ser possível a uma essência a existir sem receber o ser de si mesmo ou
de outro princípio. Sei que ele gerou um Filho, porém, como? Ignoro. Sei que o
Espírito procede dele, todavia como procede? Não sei. Eu absorvo os alimentos,
mas de que maneira se diferenciam para se transformar em humor, sangue, linfa,
bílis? Não sei. Dessa forma, ignoramos até mesmo o que vemos e comemos todos os
dias, e tentamos conhecer a essência de Deus! (22).
Sendo
o nosso conhecimento limitado, não é possível conhecer a Deus em sua essência,
tendo em vista uma distância infinita entre nós e ele. Especular sobre tal
essência constitui inevitavelmente um ato de impiedade, posto a afirmar algo
sobre Deus que ele não é[6]
posto que, “qual não será a loucura dos
que julgam possível submeter a própria essência divina a seus raciocínios?
(...) Igualmente o profeta, tendo-se inclinado sobre o oceano infinito e
abissal da sabedoria de Deus, sente vertigens, exclamando: ‘Eu te celebro
porque és admirado com temor; admiráveis são tuas obras[7]’
” (23-24).
E
não se diz limitado porque conheça uma parte da essência divina e não outra –
pois Deus é simples -, mas porque sabe que Deus existe, e ignora qual sua
essência; está ciente de que é sábio, e desconhece a extensão desta sabedoria;
não ignora que é grande, e não conhece como, nem a natureza desta grandeza;
conhece que está presente em todo o lugar, e não sabe como isso pode ser; não
desconhece que ele prevê, sustenta e governa tudo, até os ínfimos pormenores, e
ignora o modo como ele o realiza (27).
O
que se deve levar em consideração para Crisóstomo, é a limitação de nosso
conhecimento a respeito dos dogmas da fé a respeito da essência divina.
Segunda Homilia
A
revelação que Deus faz de si mesmo se estabelece por fé e não por razão, sendo
assim, cabe ao homem silenciar-se diante dela, em humildade reconhecendo suas
limitações:
Quando
Deus revela, importa aceitar sua palavra, sem nos imiscuirmos audaciosamente em
questões ociosas (...) Que direi? Acusam-me de ímpio; até me chamam de louco em
Cristo. Alegrar-me-ei também com isso, como se fosse coroado visto que
partilharei este apelativo com Paulo. Pois, efetivamente este declarou: ‘Somos
loucos por causa de Cristo’. Esta loucura é mais racional que toda espécie de
sabedoria. Ora, o que a sabedoria do mundo não pudera descobrir, a loucura por
causa de Cristo o alcançou com êxito. Dissipou as trevas terrenas e restaurou a
luz do conhecimento. Mas, o que significa ser louco por causa de Cristo?
Significa apaziguar nossos pensamentos a divagarem de maneira inoportuna,
esvaziar a mente, livre do saber mundano, a fim de receber os ensinamentos de
Cristo, disponível, como que bem varrida, a acolher as palavras divinas. Ao
revelar Deus uma verdade que não deve ser investigada indiscretamente, importa
recebe-la com fé. A propósito de tais revelações, querer inquirir as coisas,
proceder a verificações, procurar saber como se realizarão, é peculiar à alma
repleta de insolência e temoridade. Tento novamente demonstrá-lo a vós, baseado
nas próprias Escrituras (34-35).
É
possível contudo, identificar essa limitação da razão à fé em Orígenes. Segundo
Orígenes, a tradição se justifica na tradição apostólica, onde é possível
determinar verdades absolutamente certas a respeito de Deus e do homem,
determinando uma dogmática. Essas verdades são axiomáticas por natureza e por
isso longe de toda especulação. Esse é o caminho tomado por São João Crisótomo.
O que não está claro na pregação apostólica é perfeitamente aberto a um diálogo
e divergência de posições, o que não interesse a Crisóstomo.
Propomo-nos
demonstrar ser imperdoável procurar indiscretamente saber de que modo se
realizarão os oráculos divinos; em vez disso, essas revelações devem ser
recebidas com fé (...) Quando Deus fala, não é lícito argumentar, nem contrapor
a sequencia dos fatos ou as forçosas leis da natureza, nem algo de semelhante,
porque a força da palavra divina é superior a tudo isso e nenhum obstáculo o
retém (...) Zacarias nada afirmou. Queria somente saber e não obteve perdão; e
tu, que te empenhas por conhecer até mesmo o que é impossível a todos
contemplar e compreender, de que maneira te defenderás? Que castigo não
atrairás contra ti mesmo? (36-37).
Que
afirma conhecer a Deus em sua essência mente, pois, “apesar de tantas e tamanhas palavras, ainda existem os que vencem o
diabo em vanglória” (39). Há portanto, uma confusão de categorias,
fundamento de todo pecado e idolatria segundo São Atanásio, pois aquele que
conhece o absoluto, é maior que ele, o que é inverossímil.
Um
homem que ousou afirmar que: ‘Eu conheço a Deus como Deus mesmo se conhece’.
Será preciso refutar tal afirmação? Exige provas do contrário? Só o fato de
pronunciar essas palavras não basta para manifestar a impiedade que contêm? É
evidente loucura, demência imperdoável, espécie inteiramente nova de impiedade;
ninguém jamais teve a audácia de revolver algo de semelhante na mente ou
exprimi-lo com a língua (38).
Confiar
na palavra divina consiste na humildade exigida que identifica quem o homem é,
e quem Deus é. Não se trata porém, de uma castração da liberdade de pensar, mas
sim de um combate a arrogância, pois é evidente que entre Deus e o homem se
estabelece uma distância infinita, que apenas é reconhecida pela obediência:
Pois
a distância entre o homem e Deus é análoga à que separa a argila do oleiro, ou
antes, não é análoga, mas muito maior (...) Se o homem parece superior à argila
e mais belo, a diferença não provêm de desigualdade relativa à natureza, mas da
perícia do artífice, pois em nada te distingues da argila (...) Não há
diferença entre argila e oleiro, enquanto entre a essência de Deus e a dos
homens a diferença é tal que não pode ser expressa pela palavra, nem medida
pelo pensamento. Da mesma forma que a argila obedece às mãos do oleiro, seja
como for que a torneie e a modele, hás de ficar mudo como a argila quando Deus
quiser realizar algum designo seu (44).
A
revelação de Deus não constitui porém, uma categoria do conhecimento, até mesmo
da conduta, moral, mas sim de fé, e por isso, de confiança no dogma, na
tradição recebida pela Igreja da pregação apostólica, pois “Não é, pois, a argumentação, assegura ele
{Paulo}, que vos ensinará, e sim Deus, que vos há de revelar. Vês bem que não
se trata de comportamento ou gênero de vida, mas de doutrina e fé. Pois não são
a conduta e o gênero de vida que exigem revelação, mas a doutrina e
conhecimento” (48).
Terceira Homilia
A
terceira homilia trata-se especificamente da distância radical e infinita entre
Deus e os homens, como característica fundamental do próprio mistério que é
Deus. Trata portanto, da incompreensibilidade como elemento da transcendência:
Ora,
não é arrogância afirmar que o artífice está acima da compreensão de todos os
seres criados; ao contrário, sê-lo-ia assegurar que possam os que rastejam
sobre a terra, muito inferiores às virtudes do alto, circunscrever e
compreender com seus fracos raciocínios o ser incompreensível àquelas virtudes
(...) De fato, diz-se que algo é incompreensível quando os que o examinam não
conseguem apreendê-lo, apesar das pesquisas e buscas. Inacessível, porém, é o
que desde o início se furta a qualquer investigação, sequer permite aproximação
(53-55).
Como
ser transcendente, Deus está acima de toda a linguagem, seja de louvor ou
repúdio a ele. Entretanto, todo louvor ou repúdio se manifesta necessário como
expressão de salvação ou perdição dos homens[8]. A
transcendência radical de Deus constitui característica de sua impassividade.
Não há nada entre os homens que afete a Deus. Deus age por amor, isto é, por
afetação a si mesmo, tendo em vista a salvação dos homens, pois, “Por causa dele, portando, e de sua glória,
ou melhor, por nossa salvação, despendemos esses esforços. De fato, é tão
impossível, bendizendo, aumentar o esplendor de Deus, quanto prejudica-lo
ultrajando-o. Ele permanece imutável em sua glória” (52).
Quarta Homilia
A
quarta homilia trata especificadamente da incompreensibilidade de Deus para
toda a criação, não apenas para seres humanos, o que inclui os anjos e todas as
hierarquias celestes:
Invoquemo-lo, portanto, como o Deus
inexprimível, inconcebível, invisível e incompreensível. Ele ultrapassa a força
da linguagem humana e escapa ao alcance da inteligência de qualquer mortal; não
podem os anjos investiga-lo, nem os Serafins contemplá-lo, nem os Querubins
compreendê-lo; é invisível aos Principados, às Potestades, às Virtudes e a
todas as criaturas sem exceção; somente o Filho e o Espírito Santo o conhecem
(53).
Qualquer
criatura está a uma distância infinita de seu criador, posto que é criado por
ele.
Quinta Homilia
Por
fim, a última homilia trata especificamente de Jesus Cristo como imagem e
manifestação do Deus incompreensível e inacessível. Diante da própria limitação
humana em se aproximar e da impiedade e soberba em tentar compreender a
essência divina, o próprio Criador torna-se homem e manifesta-se aos homens.
Crisóstomo determina portanto, a igualdade de natureza entre o Pai e o Filho:
Se
deus ao Pai o nome de Deus único, não quis apartar-se o Filho da divindade, e
igualmente, se deu ao Filho o nome de único Senhor, não foi por pretensão de
retirar do Pai o Senhorio (...) ‘Quem, pois, dentre os homens, conhece o que é
do homem, senão o espírito do homem, que nele está? Da mesma forma, o que está
em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus’. E o filho disse também:
‘Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e quem é o Pai senão o Filho’. E
igualmente noutra passagem: ‘Não que alguém tenha visto o Pai; só aquele que
vem de junto de Deus viu o Pai. Indica também simultaneamente a perfeição com o qual ele conhece o Pai e a
razão pelo qual ele o conhece (90-91).
Cristo
é a revelação de Deus, contudo, não expressa um conhecimento total da divindade
incompreensível, mas antes, uma revelação adequada a nossa razão e capacidade
de conhecer a Deus. Em outros termos, de que Deus ao assumir a natureza humana,
determinou uma paridade com o homem de tal maneira a adequar até mesmo a razão
humana à uma determinada medida para compreender a Deus. Deus se torna homem
para que o homem compreenda Deus a partir de suas limitações humanas, ou seja,
de maneira humilde:
Se
Deus impediu este conhecimento foi para nos fechar a boca e conter-nos mais
facilmente, a fim de nos ensinar a permanecer em nossa pequenez, não querer
perscrutar o que está acima de nós e desistir de uma curiosidade indiscreta
(...) E ele não revela tudo o que sabe; somente o quanto somos capazes de
receber (92-93).
A
humildade em reconhecer as limitações da razão, assim como, reconhecer em Jesus
Cristo como a revelação de Deus adequada ao limite de nossa razão, determina
tanto uma compreensão de razão, fé e natureza humana. A razão não é contrária a
fé, mas é a fé que determina os limites da racionalidade humana, o que é
perfeitamente concebível, posto que, a razão, sendo humana, é limitada como o
homem, e a fé, sendo dom de Deus, e portanto divina, é eterna e infinita como
Deus é. É nesse aspecto que a fé é axiomática e a razão não pode determinar um
parâmetro para a fé. Compreender a essência divina por intermédio da razão
constitui uma confusão de categorias: é fazer da razão eterna e da fé uma
categoria limitada.
O
reconhecimento das limitações da razão, apenas determina as limitações de toda
a natureza humana. É assim que o homem se reconhece pecador e reconhece em
Cristo, enquanto manifestação do Criador, o seu salvador. Salvador da natureza
humana, mas também da racionalidade, adequada humildemente a imanência:
Eu
te peço, pois, suplico e conjuro. Confessa sem cessar tuas faltas a Deus. Não
quero te levar a um teatro diante de teus infelizes companheiros e não te
obrigo de forma alguma a manifestar teus pecados aos homens. Revela tua
consciência a Deus, mostra-lhe tuas feridas e dele implora os remédios;
dirigi-te a ele, não como a um censor, mas como a um médico. Alias, apesar de
te calares, ele tudo conhece. Fala, portanto. Fala a fim de que, depondo todos
os pecados, dali te retires puro e libertado do que cometeste, e assim isento
do ônus intolerável duma confissão pública (...) Ele nos atrai a si. Não
escapemos dele. Se nossos pecados são inúmeros, empenhemo-nos em correr para
ele, são a tais que ele chama, pois assegura: ‘Eu não vim chamar justos, mas
pecadores’, para que se arrependam. Aponta assim para os que carregam pesados
fardos, os que estão sofrendo, os esmagados sob o peso dos seus pecados. Ele é
denominado o Deus da consolação, Deus das misericórdias, pois continuamente
opera, consolando, encorajando os doloridos e aflitos, mesmo se cometeram
milhares de pecados (101e103).
As
limitações da razão apenas expressam as limitações do homem por inteiro.
Expressam sua fragilidade e a necessidade de plenitude de seu ser. Isso
significa buscar conhecer. Contudo essa busca é insaciável e não alcança termo.
Apenas inquieta a alma e a desespera em prepotência, onde o homem é concebido
como um absoluto. Reconhecer as limitações da razão é o primeiro passo para
aquietar o ser, e por isso também da plenitude. A exigência é que a razão
encontre o seu limite, esse limite é Cristo. Diante de Cristo a razão deve
silenciar. Isso é fé e nela o homem encontra a sua totalidade.
Bibliografia
CRISÓSTOMO.
João. Da Incompreensibilidade de Deus. Coleção Patrística. Ed. Paulus. 2007.
[1]
Diogo Santana é graduando em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Email: diogosantana45@yahoo.com.br
.
[2]
Um exemplo bem típico é a teologia de São Atanásio.
[3]
A existência de Deus, portanto, consiste na expressão de uma prática de amor,
exclusiva entre os cristãos.
[4]
Para São João Crisóstomo, o amor fundamenta a ordem. O mesmo pode ser afirmado
de São Atanásio, para quem a encarnação, enquanto ato de amor divino,
restabelece a ordem universal perdida com a queda.
[5]
Cf. Ef. 3.19.
[6] Pseudo-Dionísio
Aeropagita seguirá justamente o caminho apofágico (negativo e místico) como
acesso possível a um conhecimento sobre o sagrado.
[7]
Cf. Sl. 138.14.
[8]
De maneira que a intensidade da oração e a sua regularidade, tornam
desnecessários os intermediários: “ Se te acostumas a rezar com fervor, não
terás necessidade de ser instruído por outros servos de Deus, o qual, sem
intermediários, iluminará ele próprio teu espírito” (63). Entretanto, isso não
elimina em hipótese alguma a vida cristã em comunidade, pois “Ao invocares o
Senhor particularmente não és atendido tão bem como na companhia dos irmãos.
Aqui existe algo mais, a saber, a concordância dos espíritos e a unanimidade
das vozes, o nexo da caridade e as orações sacerdotais” (63).