sábado, 1 de agosto de 2015

Notações Para uma Futura Aula de Hermenêutica Bíblica ( III )

Da Incompreensibilidade de Deus em São João Crisóstomo
Diogo Santana[1]

São João Crisóstomo estabelece como temática de seus sermões a possibilidade de um conhecimento sobre o divino, fundamento de toda a teologia. Distingue evidentemente, o conhecimento que Deus tem de si do conhecimento que temos dele por intermédio de sua ação. Distingue essência divina de economia. Na primeira, é impossível qualquer conhecimento sobre o sagrado, desse modo, toda teologia (racionalização) consiste numa especulação sobre a economia, uma fenomenologia[2]. Uma preocupação comum à patrística alexandrina, por exemplo, ao vincular Cristo ao logos. Contudo, esse não é o caminho tomado por Crisóstomo em seu sermões, muito embora o considere válido. Seu interesse é demonstrar como qualquer especulação sobre a essência divina (como Deus conhece a si mesmo) é prepotência e por isso impiedade. Que essa essência se manifesta como vivência de amor em comunidade, na Igreja, e que não pode ser racionalizada. Essa experiência é a fé mesma. Sendo assim, não se pode separar fé de vivência de amor por Cristo em comunidade. E como vivência de amor leva em consideração sempre aquele que mais sofre.

Primeira Homilia
Há uma ordem espiritual que guia a Igreja. Consiste justamente na presença de seu pastor. Essa presença sobretudo é uma vivência. Deus existe porque nos aperfeiçoa no amor em comunidade[3], fundamento de toda a ordem[4]. E essa comunidade é a Igreja.

Com é isto? O Pastor ausente e as ovelhas em perfeita ordem! Grande feito do Pastor: o rebanho, não apenas em sua presença, mas até durante a ausência, demonstra ardente zelo! Efetivamente os animais irracionais, quando se ausenta o Pastor que os conduz às pastagens, devem necessariamente ficar dentro do cercado, ou, se vão sozinhas para fora do redil, põe-se a vaguear por lugares remotos. Aqui, porém, nada disso. Apresar da ausência do Pastor, chegastes às costumeiras pastagens, em perfeita ordem (17).

A manifestação de tal ordem na comunidade se fundamenta na caridade, prova definitiva da presença de Cristo, pois, “onde falta a caridade, as outras virtudes de nada nos servem, porque ela constitui a marca dos discípulos do Senhor” (18). Sendo assim, o amor sempre precede o conhecimento, tendo em vista que sempre o supera[5]. Só o amor em Cristo é perfeito. O conhecimento que temos dele porém, é infinitamente limitado:
Eu mesmo conheço muitas coisas cuja explicação ignoro. Por exemplo, sei que Deus está em toda a parte e todo inteiro em toda a parte; como está? Ignoro. Ele não tem começo nem fim, eu o sei, mas de que modo? Não sei. Realmente a razão não alcança ser possível a uma essência a existir sem receber o ser de si mesmo ou de outro princípio. Sei que ele gerou um Filho, porém, como? Ignoro. Sei que o Espírito procede dele, todavia como procede? Não sei. Eu absorvo os alimentos, mas de que maneira se diferenciam para se transformar em humor, sangue, linfa, bílis? Não sei. Dessa forma, ignoramos até mesmo o que vemos e comemos todos os dias, e tentamos conhecer a essência de Deus! (22).

Sendo o nosso conhecimento limitado, não é possível conhecer a Deus em sua essência, tendo em vista uma distância infinita entre nós e ele. Especular sobre tal essência constitui inevitavelmente um ato de impiedade, posto a afirmar algo sobre Deus que ele não é[6] posto que, “qual não será a loucura dos que julgam possível submeter a própria essência divina a seus raciocínios? (...) Igualmente o profeta, tendo-se inclinado sobre o oceano infinito e abissal da sabedoria de Deus, sente vertigens, exclamando: ‘Eu te celebro porque és admirado com temor; admiráveis são tuas obras[7]’ ” (23-24).
E não se diz limitado porque conheça uma parte da essência divina e não outra – pois Deus é simples -, mas porque sabe que Deus existe, e ignora qual sua essência; está ciente de que é sábio, e desconhece a extensão desta sabedoria; não ignora que é grande, e não conhece como, nem a natureza desta grandeza; conhece que está presente em todo o lugar, e não sabe como isso pode ser; não desconhece que ele prevê, sustenta e governa tudo, até os ínfimos pormenores, e ignora o modo como ele o realiza (27).

O que se deve levar em consideração para Crisóstomo, é a limitação de nosso conhecimento a respeito dos dogmas da fé a respeito da essência divina.

Segunda Homilia
A revelação que Deus faz de si mesmo se estabelece por fé e não por razão, sendo assim, cabe ao homem silenciar-se diante dela, em humildade reconhecendo suas limitações:

Quando Deus revela, importa aceitar sua palavra, sem nos imiscuirmos audaciosamente em questões ociosas (...) Que direi? Acusam-me de ímpio; até me chamam de louco em Cristo. Alegrar-me-ei também com isso, como se fosse coroado visto que partilharei este apelativo com Paulo. Pois, efetivamente este declarou: ‘Somos loucos por causa de Cristo’. Esta loucura é mais racional que toda espécie de sabedoria. Ora, o que a sabedoria do mundo não pudera descobrir, a loucura por causa de Cristo o alcançou com êxito. Dissipou as trevas terrenas e restaurou a luz do conhecimento. Mas, o que significa ser louco por causa de Cristo? Significa apaziguar nossos pensamentos a divagarem de maneira inoportuna, esvaziar a mente, livre do saber mundano, a fim de receber os ensinamentos de Cristo, disponível, como que bem varrida, a acolher as palavras divinas. Ao revelar Deus uma verdade que não deve ser investigada indiscretamente, importa recebe-la com fé. A propósito de tais revelações, querer inquirir as coisas, proceder a verificações, procurar saber como se realizarão, é peculiar à alma repleta de insolência e temoridade. Tento novamente demonstrá-lo a vós, baseado nas próprias Escrituras (34-35).

É possível contudo, identificar essa limitação da razão à fé em Orígenes. Segundo Orígenes, a tradição se justifica na tradição apostólica, onde é possível determinar verdades absolutamente certas a respeito de Deus e do homem, determinando uma dogmática. Essas verdades são axiomáticas por natureza e por isso longe de toda especulação. Esse é o caminho tomado por São João Crisótomo. O que não está claro na pregação apostólica é perfeitamente aberto a um diálogo e divergência de posições, o que não interesse a Crisóstomo.

Propomo-nos demonstrar ser imperdoável procurar indiscretamente saber de que modo se realizarão os oráculos divinos; em vez disso, essas revelações devem ser recebidas com fé (...) Quando Deus fala, não é lícito argumentar, nem contrapor a sequencia dos fatos ou as forçosas leis da natureza, nem algo de semelhante, porque a força da palavra divina é superior a tudo isso e nenhum obstáculo o retém (...) Zacarias nada afirmou. Queria somente saber e não obteve perdão; e tu, que te empenhas por conhecer até mesmo o que é impossível a todos contemplar e compreender, de que maneira te defenderás? Que castigo não atrairás contra ti mesmo? (36-37).

Que afirma conhecer a Deus em sua essência mente, pois, “apesar de tantas e tamanhas palavras, ainda existem os que vencem o diabo em vanglória” (39). Há portanto, uma confusão de categorias, fundamento de todo pecado e idolatria segundo São Atanásio, pois aquele que conhece o absoluto, é maior que ele, o que é inverossímil.

Um homem que ousou afirmar que: ‘Eu conheço a Deus como Deus mesmo se conhece’. Será preciso refutar tal afirmação? Exige provas do contrário? Só o fato de pronunciar essas palavras não basta para manifestar a impiedade que contêm? É evidente loucura, demência imperdoável, espécie inteiramente nova de impiedade; ninguém jamais teve a audácia de revolver algo de semelhante na mente ou exprimi-lo com a língua (38).

Confiar na palavra divina consiste na humildade exigida que identifica quem o homem é, e quem Deus é. Não se trata porém, de uma castração da liberdade de pensar, mas sim de um combate a arrogância, pois é evidente que entre Deus e o homem se estabelece uma distância infinita, que apenas é reconhecida pela obediência:

Pois a distância entre o homem e Deus é análoga à que separa a argila do oleiro, ou antes, não é análoga, mas muito maior (...) Se o homem parece superior à argila e mais belo, a diferença não provêm de desigualdade relativa à natureza, mas da perícia do artífice, pois em nada te distingues da argila (...) Não há diferença entre argila e oleiro, enquanto entre a essência de Deus e a dos homens a diferença é tal que não pode ser expressa pela palavra, nem medida pelo pensamento. Da mesma forma que a argila obedece às mãos do oleiro, seja como for que a torneie e a modele, hás de ficar mudo como a argila quando Deus quiser realizar algum designo seu (44).

A revelação de Deus não constitui porém, uma categoria do conhecimento, até mesmo da conduta, moral, mas sim de fé, e por isso, de confiança no dogma, na tradição recebida pela Igreja da pregação apostólica, pois “Não é, pois, a argumentação, assegura ele {Paulo}, que vos ensinará, e sim Deus, que vos há de revelar. Vês bem que não se trata de comportamento ou gênero de vida, mas de doutrina e fé. Pois não são a conduta e o gênero de vida que exigem revelação, mas a doutrina e conhecimento” (48).

Terceira Homilia
A terceira homilia trata-se especificamente da distância radical e infinita entre Deus e os homens, como característica fundamental do próprio mistério que é Deus. Trata portanto, da incompreensibilidade como elemento da transcendência:

Ora, não é arrogância afirmar que o artífice está acima da compreensão de todos os seres criados; ao contrário, sê-lo-ia assegurar que possam os que rastejam sobre a terra, muito inferiores às virtudes do alto, circunscrever e compreender com seus fracos raciocínios o ser incompreensível àquelas virtudes (...) De fato, diz-se que algo é incompreensível quando os que o examinam não conseguem apreendê-lo, apesar das pesquisas e buscas. Inacessível, porém, é o que desde o início se furta a qualquer investigação, sequer permite aproximação (53-55).

Como ser transcendente, Deus está acima de toda a linguagem, seja de louvor ou repúdio a ele. Entretanto, todo louvor ou repúdio se manifesta necessário como expressão de salvação ou perdição dos homens[8]. A transcendência radical de Deus constitui característica de sua impassividade. Não há nada entre os homens que afete a Deus. Deus age por amor, isto é, por afetação a si mesmo, tendo em vista a salvação dos homens, pois, “Por causa dele, portando, e de sua glória, ou melhor, por nossa salvação, despendemos esses esforços. De fato, é tão impossível, bendizendo, aumentar o esplendor de Deus, quanto prejudica-lo ultrajando-o. Ele permanece imutável em sua glória” (52).

Quarta Homilia
A quarta homilia trata especificadamente da incompreensibilidade de Deus para toda a criação, não apenas para seres humanos, o que inclui os anjos e todas as hierarquias celestes: 
 Invoquemo-lo, portanto, como o Deus inexprimível, inconcebível, invisível e incompreensível. Ele ultrapassa a força da linguagem humana e escapa ao alcance da inteligência de qualquer mortal; não podem os anjos investiga-lo, nem os Serafins contemplá-lo, nem os Querubins compreendê-lo; é invisível aos Principados, às Potestades, às Virtudes e a todas as criaturas sem exceção; somente o Filho e o Espírito Santo o conhecem (53).
Qualquer criatura está a uma distância infinita de seu criador, posto que é criado por ele.

Quinta Homilia
Por fim, a última homilia trata especificamente de Jesus Cristo como imagem e manifestação do Deus incompreensível e inacessível. Diante da própria limitação humana em se aproximar e da impiedade e soberba em tentar compreender a essência divina, o próprio Criador torna-se homem e manifesta-se aos homens. Crisóstomo determina portanto, a igualdade de natureza entre o Pai e o Filho:

Se deus ao Pai o nome de Deus único, não quis apartar-se o Filho da divindade, e igualmente, se deu ao Filho o nome de único Senhor, não foi por pretensão de retirar do Pai o Senhorio (...) ‘Quem, pois, dentre os homens, conhece o que é do homem, senão o espírito do homem, que nele está? Da mesma forma, o que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus’. E o filho disse também: ‘Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e quem é o Pai senão o Filho’. E igualmente noutra passagem: ‘Não que alguém tenha visto o Pai; só aquele que vem de junto de Deus viu o Pai. Indica também simultaneamente  a perfeição com o qual ele conhece o Pai e a razão pelo qual ele o conhece (90-91).

Cristo é a revelação de Deus, contudo, não expressa um conhecimento total da divindade incompreensível, mas antes, uma revelação adequada a nossa razão e capacidade de conhecer a Deus. Em outros termos, de que Deus ao assumir a natureza humana, determinou uma paridade com o homem de tal maneira a adequar até mesmo a razão humana à uma determinada medida para compreender a Deus. Deus se torna homem para que o homem compreenda Deus a partir de suas limitações humanas, ou seja, de maneira humilde:

Se Deus impediu este conhecimento foi para nos fechar a boca e conter-nos mais facilmente, a fim de nos ensinar a permanecer em nossa pequenez, não querer perscrutar o que está acima de nós e desistir de uma curiosidade indiscreta (...) E ele não revela tudo o que sabe; somente o quanto somos capazes de receber (92-93).

A humildade em reconhecer as limitações da razão, assim como, reconhecer em Jesus Cristo como a revelação de Deus adequada ao limite de nossa razão, determina tanto uma compreensão de razão, fé e natureza humana. A razão não é contrária a fé, mas é a fé que determina os limites da racionalidade humana, o que é perfeitamente concebível, posto que, a razão, sendo humana, é limitada como o homem, e a fé, sendo dom de Deus, e portanto divina, é eterna e infinita como Deus é. É nesse aspecto que a fé é axiomática e a razão não pode determinar um parâmetro para a fé. Compreender a essência divina por intermédio da razão constitui uma confusão de categorias: é fazer da razão eterna e da fé uma categoria limitada.

O reconhecimento das limitações da razão, apenas determina as limitações de toda a natureza humana. É assim que o homem se reconhece pecador e reconhece em Cristo, enquanto manifestação do Criador, o seu salvador. Salvador da natureza humana, mas também da racionalidade, adequada humildemente a imanência:
Eu te peço, pois, suplico e conjuro. Confessa sem cessar tuas faltas a Deus. Não quero te levar a um teatro diante de teus infelizes companheiros e não te obrigo de forma alguma a manifestar teus pecados aos homens. Revela tua consciência a Deus, mostra-lhe tuas feridas e dele implora os remédios; dirigi-te a ele, não como a um censor, mas como a um médico. Alias, apesar de te calares, ele tudo conhece. Fala, portanto. Fala a fim de que, depondo todos os pecados, dali te retires puro e libertado do que cometeste, e assim isento do ônus intolerável duma confissão pública (...) Ele nos atrai a si. Não escapemos dele. Se nossos pecados são inúmeros, empenhemo-nos em correr para ele, são a tais que ele chama, pois assegura: ‘Eu não vim chamar justos, mas pecadores’, para que se arrependam. Aponta assim para os que carregam pesados fardos, os que estão sofrendo, os esmagados sob o peso dos seus pecados. Ele é denominado o Deus da consolação, Deus das misericórdias, pois continuamente opera, consolando, encorajando os doloridos e aflitos, mesmo se cometeram milhares de pecados (101e103).

As limitações da razão apenas expressam as limitações do homem por inteiro. Expressam sua fragilidade e a necessidade de plenitude de seu ser. Isso significa buscar conhecer. Contudo essa busca é insaciável e não alcança termo. Apenas inquieta a alma e a desespera em prepotência, onde o homem é concebido como um absoluto. Reconhecer as limitações da razão é o primeiro passo para aquietar o ser, e por isso também da plenitude. A exigência é que a razão encontre o seu limite, esse limite é Cristo. Diante de Cristo a razão deve silenciar. Isso é fé e nela o homem encontra a sua totalidade.

Bibliografia
CRISÓSTOMO. João. Da Incompreensibilidade de Deus. Coleção Patrística. Ed. Paulus. 2007.



[1] Diogo Santana é graduando em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Email: diogosantana45@yahoo.com.br .
[2] Um exemplo bem típico é a teologia de São Atanásio.
[3] A existência de Deus, portanto, consiste na expressão de uma prática de amor, exclusiva entre os cristãos.
[4] Para São João Crisóstomo, o amor fundamenta a ordem. O mesmo pode ser afirmado de São Atanásio, para quem a encarnação, enquanto ato de amor divino, restabelece a ordem universal perdida com a queda.
[5] Cf. Ef. 3.19.
[6] Pseudo-Dionísio Aeropagita seguirá justamente o caminho apofágico (negativo e místico) como acesso possível a um conhecimento sobre o sagrado.
[7] Cf. Sl. 138.14.
[8] De maneira que a intensidade da oração e a sua regularidade, tornam desnecessários os intermediários: “ Se te acostumas a rezar com fervor, não terás necessidade de ser instruído por outros servos de Deus, o qual, sem intermediários, iluminará ele próprio teu espírito” (63). Entretanto, isso não elimina em hipótese alguma a vida cristã em comunidade, pois “Ao invocares o Senhor particularmente não és atendido tão bem como na companhia dos irmãos. Aqui existe algo mais, a saber, a concordância dos espíritos e a unanimidade das vozes, o nexo da caridade e as orações sacerdotais” (63). 

Notações Para Uma Futura Aula de Hermenêutica Bíblia ( II )


A Encarnação do Verbo Segundo Atanásio
Diogo Santana[1]
Resumo

É reconhecido no dogma da encarnação uma das mais contundentes justificativas para uma doutrina cristã. A encarnação formaliza as bases para uma infinidade de outros dogmas, dentre elas, a natureza de Jesus, sua filiação divina, seu propósito soteriológico e escatológico.

A Instituição da Idolatria

Em seu livro Refutação da Idolatria, Atanásio fundamenta toda sua argumentação na identidade entre criador e criatura, na filiação divina entre Deus e o homem.
Por sua semelhança com ele, o tornou capaz de contemplar e conhecer os seres, deu-lhe a idéia e o conhecimento de sua própria eternidade, a fim de que, conservando a sua integridade, o homem não mais se afaste do pensamento de Deus e não se distancie da comunidade dos santos, mas que, conservando a graça que recebeu de Deus, conservando também o próprio poder que lhe vem do verbo do Pai, ele viva, na alegria e na intimidade com Deus, uma vida sem inquietude e verdadeiramente feliz, uma vida imortal (47).
Essa identidade constitui uma unidade, que Atanásio identifica na imortalidade, na intimidade com Deus e na comunidade com os santos. O homem originalmente está integrado à toda a criação, e como emana de Deus é eterno com ele. O conceito de pecado, em Atanásio, constitui o drama cósmico de desarticulação ontológica entre o homem, Deus e toda a criação. Sendo assim, a unidade cede à pluralidade, o espírito cede ao sensível, o eterno ao que é transitório e imediato.

Mas os homens, negligenciando as realidades superiores e lentos para compreende-las, procuraram de preferência aquelas que estavam mais próximas deles. Ora, o que está mais próximo, é o corpo e seus sentidos: assim desviavam o seu espírito dos inteligíveis e se olharam para se considerarem eles próprios. Considerando-se a si próprios, apegando-se aos seus corpos e às outras coisas sensíveis, e enganando-se, por assim dizer, na sua própria causa, chegaram a se desejar a si próprios, preferindo o seu próprio bem à contemplação das realidades divinas. Eles permaneceram aí, recusando a se afastar dos prazeres imediatos, aprisionaram a sua alma nas volúpias corporais que a deixaram perturbada e enlameada em toda a espécie  de desejos; porque eles haviam completamente esquecido o poder que no início tinham recebido de Deus (49)

Desarticulado do mundo e de Deus, mas ainda neles. Essa é a condição desesperadora de uma humanidade que para garantir algum sentido em viver, torna absoluto o que é relativo, e por isso, vive radicalmente suas paixões. Essa é segundo Atanásio, a origem da idolatria. Sendo porém de origem ontológica, é inevitável que para o teólogo, todo homem seja naturalmente e universalmente um idólatra. Tornar absoluto o que é relativo, uno ao que é múltiplo, fazer do espiritual o que é sensível, isto é para Atanásio, criar um ídolo. Confusão de categorias.  

Assim, repleta de todas as espécies de desejo carnais e perturbada pela falsa opinião que forma para si própria, conclui por imaginar segundo as coisas corporais e sensíveis a Deus de cujo pensamento esqueceu, e dá às aparências o nome de Deus; só aprecia o que quere tem como agradável. É então o mal que é a causa e o princípio da idolatria (56).

A partir de tal constatação, se propõe a determinar as formas pelos quais a idolatria se manifesta em sua complexidade: adoração da natureza, de seres híbridos, dos deuses e dos próprios desejos humanos. Sendo toda idolatria, uma confusão de categorias, o que Atanásio faz é restabelecer argumentativamente a condição de relativo, múltiplo e sensível dos seres antes divinizados. Nesse aspecto, sua teologia não difere em nada de uma proposta de laicização[2].

A forma mais rudimentar de idolatria consiste na veneração dos entes naturais:

O espírito humano apenas começara a se afastar de Deus, quando os homens mergulhando nos seus pensamentos e raciocínios, renderam as honras divinas primeiramente ao firmamento, ao sol, à lua e aos astros, consideraram-nos não apenas como deuses, mas como a causa de todos os outros seres que viam entre eles. Depois continuaram a descer em seus tenebrosos raciocínios chamaram deuses o éter, o ar e os seres aéreos. Progredindo ainda no mal, cantaram como deuses os elementos e os princípios da constituição dos corpos, o quente e o frio, o seco e o úmido (57).

Outra espécie de idolatria consiste na veneração reificada de seres andrógenos, entre homens e animais:
 Porque alguns desceram tão baixo em seus pensamentos e obscureceram de tal modo o seu espírito, que inventaram seres que absolutamente não existem e que não se veem na criação, para fazer deles deuses. Misturando os seres racionais aos seres desprovidos de razão, e ligando juntamente naturezas diferentes, honram-nos como deuses: tais são entre os egípcios, os deuses de cabeça de cão, de serpente ou de burro, e entre os líbios Amon, o deus de cabeça de carneiro (57-58).

Tal como numa progressão, chega-se aos desejos humano, pois  “outros, indo mais longe em sua impiedade, divinizaram o que fora o pretexto de sua invenção e de sua maldade, o prazer e o desejo, e eles os adoram: tais são entre eles o Eros, e o Afrodite de Pafos” (58). Por fim, a reificação dos desejos, inevitavelmente estabelece a divinização do próprio homem. Contudo, segundo Atanásio, os deuses nada mais são do que homens divinizados por poderosos (nobres em sua maioria), estabelecendo sua devoção pública por meio de leis, que com o tempo, se adequam ao costume cultural:
Alguns, como se quisessem rivalizar com os mais perversos, tiveram a audácia de pôr na fileira dos deuses os príncipes e seus filhos, seja por veneração para com estes príncipes, seja por medo de sua tirania; assim entre os gregos o célebre Zeus de Creta, e Hermes na Arcádia, entre os indianos Dionísios, entre os egípcios Ísis, Osíris e Horo, e nos nossos dias Antinou, o favorito do imperador romano Adriano; eles sabem bem que era homem, e homem pouco respeitável, e cheio de libertinagens, e portanto eles o veneram por medo do chefe (58).

A saudade de quem amamos também é um instrumento para a criação de deidades:   

Um pai aflito por um luto prematuro mandou fazer a imagem do filho que tão cedo lhe tinha sido arrebatado, e  este ser humano que estava morto, ele o honra como se estivesse vivo e transmitiu aos seus servos mistérios e iniciações. Em seguida, este costume ímpio, firmando-se com o tempo, foi observado como lei (61).

Por fim, estabelece a contestação, porém, seguindo a ordem inversa no qual fora exposta anteriormente. Os deuses nada mais são do que homens divinizados, mas não qualquer homem, mas sim, os mais imorais dentre eles:
Verdadeiramente é justo considera-lo como Deus, um ser que cometeu tão grandes crimes, e que é acusado de coisas que até as leis comuns dos romanos não permitiam aos que são homens? Visto que seus crimes são tão numerosos não evocarei senão alguns entre muitos outros. Vendo-o seduzir criminosamente Semele, Leda, Alcmene, Ártemis, Leto, Maia, Europa, Danae, Antíope, ; e vendo os seus empreendimentos audaciosos a respeito de sua própria mulher, quem não zombaria dele e não o condenaria a morte? E não somente ele cometeu adultérios, mas elevou à classe dos deuses as crianças nascidas de seus adultérios, procurando velar os seus crimes sob a aparência desta divinização: tais são os Dioninos, Héracles, os Dióscuros, Hermes, Perseu e Soteira (...) quem não condenaria a sua natureza e não recusaria dizer que ainda são deuses? E sabendo que são corruptíveis e passíveis, avaliaria que são apenas homens, e homens fracos e admiraria os que os feriram mais que os próprios feridos (63-64).

Os deuses, por serem homens e homens sem virtude, tornam-se paradigmas éticos para toda uma cultura, que para Atanásio corresponde a um risco social:

Eis o que fazem, e outras coisas do mesmo gênero e por este meio reconhecem e demonstram que os seus supostos deuses levaram a mesma vida. É de Zeus que eles aprendem a pederastia e o adultério, de Afrodite a prostituição, de Rhéa a impudícia, de Ares os homicídios, e de outros, crimes do mesmo gênero que as leis punem e que todo homem sábio evita. Os que fazem isso são dignos de estar na categoria dos deuses, e não seria mais necessário, por causa da imoralidade da sua conduta, os considerar menos racionais que os animais sem razão? (82).

Contestando a divinização dos homens, Atanásio se propõe a contestar a divinização da natureza. O argumento principal consiste na afirmação de que a divinização da natureza implica a autonomia de cada fenômeno natural em relação ao restante do meio, e assim sendo , ao caos absoluto, o que é inverossímil com a realidade:
Esses pretensos sábios se afastam dele para adorar e divinizar a criação que é sua obra que ela mesma adora o Senhor que eles negam por causa dela. Eles ficam assim de boca escancarada perante os elementos da natureza e pensam que são deuses; mas poder-se-ia facilmente confundi-los mostrando-lhes que estes mesmos elementos têm necessidade uns dos outros, e que fazem conhecer e manifestam o seu Senhor e criador, o Pai do verbo, pela ordem absoluta de sua obediência para com ele (84).

A ordem presente no Cosmos implica uma dependência mútua entre os fenômenos naturais, e desta, uma ordem fundada por uma mesma intensão, consciência e ser, por um mesmo Deus.
   
A Encarnação do Verbo
A refutação do politeísmo em Atanásio estabelece uma defesa do monoteísmo cristão (trinitário). A contestação do que não é Deus, a uma defesa de quem Deus seria. Sendo o pecado do ponto de vista ontológico uma confusão de termos, e inevitavelmente a um equívoco a respeito de quem é Deus (idolatria), Atanásio se propõe a uma reabilitação dessas categorias a fim de justificar como estas se relacionam adequadamente a fim de determinar a encarnação. A encarnação seria a adequada relação entre as categorias do tempo e da eternidade, do finito e do infinito, do absoluto e do relativo, mas não sua confusão, origem de toda idolatria.
Para tanto, reconhece que o conhecimento de um ser eterno, apenas se torna possível por um atributo eterno no homem, tal como as coisas finitas se conhecem por intermédio de atributos finitos (sentidos). Defende, portanto que o homem é por natureza uma síntese entre finito e infinito, e que o conhecimento de Deus parte inevitavelmente do conhecimento da alma. A alma para Atanásio é racional e independente dos sentidos. Daí se concluir sua filiação divina e imortalidade. Sua paridade definitiva com o criador:
Do mesmo modo que, o corpo sendo mortal, os seus sentidos contemplam coisas mortais, assim a alma que contempla realidades imortais e raciocina sobre elas, deve necessariamente ser imortal e viver eternamente (94). 

Outro meio possível para o conhecimento de Deus se estabelece no reconhecimento da ordem da criação, que implica necessariamente uma intenção, um ser, um Deus:

Concluímos que há no corpo uma alma que comanda os membros, também se não a vemos. Assim, a ordem e harmonia do universo levam necessariamente a conceber um Deus que comanda todas as coisas, e um Deus único e não múltiplo. Porque a própria disposição desta ordem e a harmoniosa concórdia do universo mostram a existência do Logos que o comanda e dirige, e não de muitos, mas de um só (102).

Esse Deus único criou o homem do nada ao ser. Ausente de seu fundamente e voltando-se para o múltiplo, o sensível e o transitório, o homem regressa do ser ao nada, estabelecendo a sua mortalidade:
A transgressão ao mandamento os reconduziu ao seu estado natural, e assim como haviam passado do nada ao ser, era justo que doravante fossem sujeitos no decurso do tempo à corrupção, propensa ao nada. Uma vez que antes nada era por natureza, e a presença e a filantropia do Verbo os chamou ao ser, consequentemente alheios ao pensamento de Deus, e voltados para o nada (pois o mal é não-ser, e o bem é ser, saído das mãos de Deus, que é), os homens foram privados do ser, que seria eterno (128-29).

Sendo assim, o homem que era imagem e semelhança de Deus, se torna imagem e semelhança do nada, isto é, de qualquer coisa, pois “a morte exercia cada vez mais seu poder e a corrupção subsistia no meio dos homens. Desta forma, o gênero humano encaminhava-se para a perda. O homem racional, criado à imagem do Verbo, desaparecia e a obra de Deus ia se arruinando” (131).

A encarnação do Verbo torna-se portanto um instrumento divino para a aniquilação da morte e o regresso do homem do nada para o ser, da mortalidade para a imortalidade, da corrupção para a incorrupção. Um regresso ontológico ao Éden.

O Verbo, portanto, compreendia que a corrupção dos homens de forma alguma poderia ser destruída, a não ser pela morte. Mas, era impossível que o Verbo morresse por ser imortal, ele, do Pai o Filho. Por isso, assume corpo mortal, a fim de que este, participe do Verbo, superior a tudo, seja capaz de morrer por todos, e graças ao Verbo que nele habita, permaneça incorruptível e doravante faça cessar em todos a corrupção pela graça da ressurreição (135).

Esse tipo de constatação é inverossível a compreensão humana, dada a distância entre criador e criatura. Cristo portanto, se torna o modelo de homem renascido à imagem e semelhança de Deus que deve ser imitado.
De fato, Deus é incriado, os homens foram criados do nada. Deus é incorpóreo e os homens foram dotados de corpo. Em resumo, é muito grande a incapacidade da parte das criaturas de compreender e conhecer o criador. Deus porém, em sua bondade, teve ainda compaixão do gênero humano, e não deixou os homens privados deste conhecimento, a fim de não julgarem, por sua vez, inútil a existência (138).
Que seria então necessário que Deus fizesse? Sim, que devia fazer, a não ser renovar o que era segundo a imagem de Deus, a fim de que por meio dele os homens pudessem ainda conhece a Deus? E como se faria isso, a não ser pela presença da imagem do próprio Deus, nosso salvador Jesus Cristo? De fato, tal coisa não era viável aos homens, apesar de terem sido criados segundo a imagem. Nem aos anjos, uma vez que eles não são imagens. Por isso o Verbo de Deus veio ele próprio, a fim de que , sendo a imagem do Pai, possa re-criar o homem segundo a imagem (142-143).



Contestação das Oposições Judaica e Grega

Atanásio reconhece a autoridade da Escritura hebraica como profética e messiânica. Sua intensão nesse reconhecimento consiste em identificar na figura humilde de Jesus de Nazaré, o Verbo divino através das profecias bíblicas: de que a encarnação é por natureza a consumação na história de toda a dinâmica profética contida nas Escrituras. Sendo assim, a rejeição judaica a Jesus como messias é desprovida de fundamento:
A quem, pois, assim as Escrituras Sagradas se referem? Quem é este ser tão grande do qual os profetas anunciam coisas tão prodigiosas? Nenhum outro se encontra enquanto tal nas Escrituras, a não ser nosso Salvador comum, o Verbo de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo. É procedente da virgem, apareceu qual homem na terra aquele cuja geração segundo a carne é inenarrável. Com efeito, não se lhe atribui um pai segundo a carne, porque seu corpo não provêm de homem e sim apenas de virgem (174).
Pura invenção dos judeus, portanto, que transferem para o futuro fatos presentes. Quando cessaram em Israel profeta e visão, a não ser quando apareceu o santo dos santos, o Cristo? Sinal e marca considerável da presença do Verbo de Deus era não substituir Jerusalém, não surgir profeta algum, nem revelação por meio de visão. E era perfeitamente exato. Pois, tendo chegado o que os sinais prenunciavam, que necessidade ainda havia destes sinais? Ao aparecer a realidade, para que ainda as sombras? Por esta razão, os profetas falaram até que chegasse a própria justiça, quem redime os pecados de todos. Jerusalém perdurou muito a fim de que os judeus ali considerassem as figuras da realidade futura (178).

Contra os gregos porém, Atanásio justificava a relação do logos universal com o homem particular Jesus Cristo. Em primeiro lugar porque se o verbo habita o todo, inevitavelmente estaria em suas partes, logo, também no homem, posto que “De igual modo, quem concede e crê estar o Verbo de Deus presente no mundo inteiro, ser o universo iluminado e movido por ele, não se admira de que ilumine e mova um corpo humano” (182). Segundo, porque para aproximar-se do homem e interagir com ele, Deus tornou-se homem também, estabelecendo uma paridade, pois “ segue-se que o médico e salvador devia aproximar-se das criaturas para curá-las. Por isso, ele se fez homem e empregou o corpo humano, qual instrumento” (185). Por fim, Deus ao tornar-se homem, corpo e matéria, os diviniza, os deifica, os aproxima dele:

Ele se fez homem para que fossemos deificados, tornou-se corporalmente visível, a fim de adquirirmos uma noção do Pai invisível. Suportou ultrajes da parte dos homens, para que participássemos da imortalidade. Com isso nenhum dano suportou, sendo impassível e incorruptível, o próprio Verbo e Deus. Mas em sua própria impassibilidade guardou e preservou os homens sofredores, em prol dos quais tudo isso suportara (198).

Conclusão

É inegável a importância da figura de Atanásio no primeiro concílio ecumênico da Igreja em 325. Onde se tratou fundamentalmente em se estabelecer uma oposição ao movimento ariano que negava a identidade entre Deus Pai e o Filho. De que o Filho enquanto enviado do Pai, era criado por ele e sendo assim, não era co-eterno, assumindo desse modo a posição privilegiada de ser a primeira de todas as criaturas e por isso superior a todas as outras, mas ainda sim, sujeita e inferior ao Pai. É nesse aspecto que Jesus e Deus se distinguem, e que Atanásio se estabelece contra. A unidade entre o Pai e o Filho é fundamental para a própria salvação da humanidade decaída, doutro modo não poderia haver proximidade entre um Deus infinitamente transcendente e um homem radicalmente imanente (pecador). Sendo assim, Atanásio leva às últimas consequências as palavras do apóstolo São Paulo: “Porque há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem”[3].

Biografia
ATANÁSIO. São. Contra os Pagãos. Ed. Paulus. 2012.
_________. São. A Encarnação do Verbo. Ed. Paulus. 2012.



[1] Diogo Santana é graduando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Email: diogosantana45@yahoo.com.br .
[2] Uma laicização que não é radical, tendo em vista ainda, o Uno, este sim, sagrado e imortal.
[3] 1 Tm. 2.5. 

Notações Para Uma Futura Aula Sobre Hermenêutica Bíblica ( l )


Princípios Hermenêuticos de Orígenes
Diogo Santana[1]

Resumo

Orígenes (*185 - 253+) é reconhecido como um dos fundadores da exegese bíblia do novo testamento.  O que não o excluiu de envolver-se em controvérsias doutrinárias entre seus intérpretes.  O presente trabalho  tem como objetivo expressar alguns elementos fundamentais da hermenêutica e exegese originiana, tais como sua ampliação da doutrina do logos, a justificação de uma tradição apostólica, fundamento das Escrituras  e relação entre leitor e texto.  
Palavras-chave: Orígenes, razão, tradição.

Abstract

Origen (* 185 - 253+ ) is recognized as a founder of Bible exegesis of the New Testament . What does not exclude to engage in doctrinal disputes between its interpreters . This work aims to express some fundamental elements of hermeneutics and exegesis originiana such as its expansion of the doctrine of the logos, the justification of an apostolic tradition , the foundation of Scripture and relationship between reader and text.

Keywords: Origen , reason, tradition.

Introdução

Rufino[2], tradutor de Orígenes para o latim, compreende que a filosofia possui irrevogavelmente um elemento religioso e exclusivamente cristão[3], que porém é renegado e encoberto pelos filósofos. Orígenes seria um daqueles cujo trabalho constitui em restabelecer esse elemento filosófico a quem de direito. Desse modo, argumentando que a filosofia (a portadora do logos) apenas se realiza no Cristo que é o logos em si, de modo que só há filosofia propriamente dita no cristianismo, e que o cristianismo é estritamente filosófico.
Com efeito, aqui ele discute assuntos a que os filósofos dedicaram a vida inteira sem nada resolver. Certamente o nosso autor assim o fez, na medida de suas forças, para reconduzir a fé em Deus e ao conhecimento das criaturas, o espírito religioso que, por tais sábios, se tinha extraviado na impiedade (RUFINO. 2012: 47).

Inicia seu trabalho argumentando que, considerando ser Cristo a verdade e que suas palavras ensinam os homens a viverem no bem e na felicidade (aspecto teleológico, as mesmas não se limitam a uma pessoa histórica, mas são consumadas nela[4]. É nesse aspecto que ele concebe, tal como o escritor de hebreus[5], uma razão progressiva na história da revelação, sendo essa mesma razão o próprio Cristo.
Há portanto um princípio que fundamenta a história da salvação, que é consumado em Cristo, mas que é precedente a sua pessoa histórica, como logos. É justamente no estabelecimento desses princípios, que Orígenes estabelece o seu objetivo, contra uma pluralidade de conceitos sobre a doutrina cristã.

Ora, uma vez que há muitos desacordos entre aqueles que professam a fé em Cristo, e que essas discordâncias não são só sobre questões secundárias, ou mesmo muito secundárias, mas também sobre questões importantes e às vezes de grande importância – como acerca de Deus, do Senhor Jesus Cristo, sobre o Espírito Santo, e não somente sobre eles, mas também sobre as criaturas, isto é, as Dominações, as Santas Potestades-, e por causa disso parece-nos necessário estabelecer em primeiro lugar sobre cada um desses assuntos uma diretriz certa e uma regra clara (...). Muitos gregos e bárbaros prometiam a verdade e, contudo, a partir do momento em que Cristo é o Filho de Deus e reconhecemos que era preciso aprender com ele a verdade, renunciamos a procura-la junto de todos eles, porque o que eles afirmam a esse respeito são apenas falsas opiniões (ORÍGENES. 2012: 50).

Assim como as palavras de Cristo constituem uma ordem na história (logos) até sua pessoa histórica, é posterior a ela na pregação apostólica. A obediência a esta ordem constitui uma sucessão e é o critério para o estabelecimento de uma tradição[6]. Fundamento autêntico de uma doutrina cristã. O que se deve levar em conta para Orígenes é a fidelidade ao kerigma apostólico, de geração em geração anunciado sem modificação, e que por isso mesmo, sem modificação ou erro. A ortodoxia se estabelece na reprodução de tal kerigma, isto é, das palavras de Cristo na vida da igreja. A heterodoxia por outro lado, consiste no desacordo entre as partes. 

Porém a pregação eclesiástica é preservada e transmitida desde os Apóstolos e seus sucessores, e subsiste até hoje nas Igrejas; por isso só deve ser recebida como verdadeira aquela em que não há nenhuma discordância com a tradição eclesiástica e apostólica. Eis, portanto, o que é preciso saber: quando os santos apóstolos pregaram a fé em Cristo, sobre todos os temas que consideraram necessários, transmitiram o ensinamento a todos os crentes de forma muito clara, e assim foi, mesmo para aqueles que não pareciam tão empenhados na busca do conhecimento divino; mas a tarefa de procurar as razões do que afirmavam deixaram-na àqueles que mereciam os dons eminentes do Espírito Santo, e que teriam recebido em particular pelo próprio Espírito Santo a graça da palavra, da sabedoria e do conhecimento (1Cor. 12,8). (ORÍGENES. 2012. 50-51).

Tal postura estabelece uma hermenêutica. A fidelidade ao kerigma estabelece, a princípio, tanto literalidade quanto um caráter impositivo. A fidelidade ao logos presente na história, seja posterior a Cristo ou anterior a ele, constitui a justificativa para uma unidade presente na lei, nos profetas e nos evangelhos, o que determina igualdade de autoridade na tradição. O que para Orígenes constitui uma consequência de identidade (natureza[7] e autoridade) entre Deus Pai e Deus Filho.

Dogma e Razão no Kerigma Apostólico

Embora a tarefa do kerigma apostólico seja impositivo, dogmático e positivo, suas razões por outro lado constitui uma tarefa destinada a pessoas divinamente inspiradas para isso. A partir de então, os Princípia se estabelece na fundamentação de tais razões.
Para Orígenes há elementos absolutamente certos na pregação apostólica (dogmáticos) e outros passíveis de discussão e debate. Como absolutamente certos, Orígenes distingue uma teologia e uma antropologia. Como absolutamente certo na pregação apostólica no âmbito teológico, Orígenes esclarece:
  
 As questões que a pregação apostólica nos transmitiu de maneira clara são as seguintes: em primeiro lugar, que há um só Deus, que criou e ordenou todas as coisas e que, quando ainda nada existia, fez existir todas as coisas (Hermas, Mad 1,1)[8]; que Deus depois da criação e da fundação do mundo, foi o Deus de todos os justos: de Adão, Abel, Seth, Enós, Enoque, Noé, Sem, Abraão, Issac, Jacó, dos Doze Patriarcas, de Moisés e dos Profetas, nos últimos tempos, enviou o Senhor Jesus Cristo, sem dúvida para chamar em primeiro lugar Israel, mas depois para chamar também os pagãos, depois da infidelidade do povo de Israel. Esse Deus justo e bom, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, nos deu a Lei, os Profetas e os Evangelhos, ele que é o Deus tanto dos apóstolos como do Antigo e do Novo Testamento. A questão seguinte é que Jesus Cristo, aquele que veio, nasceu do Pai antes de todas as criaturas[9]; ele estava no Pai na fundação de todas as coisas (Pr. 8,22-31; Sb 9,9), pois por ele tudo foi feito (Jo 1,3); nos últimos tempos ele se fez homem, encarnou, ele que é Deus se fez homem e se aniquilou a si mesmo (Fl 2,7) sem deixar de ser Deus; tomou um corpo semelhante ao nosso, com a única diferença que nasceu de uma virgem e do Espírito Santo. Ele, Jesus Cristo, nasceu e sofreu realmente, e não apenas em aparência, e realmente morreu, de uma morte comum; porque de fato também ressuscitou de entre os mortos, pois, tendo vivido com seus discípulos após a ressurreição foi elevado aos céus. Em terceiro lugar, os apóstolos nos transmitiram o ensinamento sobre o Espírito Santo, associado ao Pai e ao Filho em honra e dignidade; a seu respeito não se distingue claramente se o Espírito é gerado ou inato, e se também devemos considera-lo ou não como Filho de Deus, são coisas que devemos investigar na Sagrada Escritura, e, na medida das nossas forças, procura-las com perspicácia. É certo, porém, que a Igreja pregade modo muito claro que o Espírito Santo inspirou cada um dos santos, dos profetas e dos apóstolos, e que ele, o inspirador depois da vinda de Cristo, é o mesmo que inspirou os Antigos (ORÍGENES. 2012: 51-52).

É evidente um aspecto credal na teologia apontada por Orígenes como absolutamente certa na pregação apostólica. Por outro lado, há também um aspecto antropológico que se coaduna a teologia, e que Orígenes também considera como absolutamente certo no kerigma:

Depois dessas questões, vêm as das almas: dotada de inteligência e de vida próprias será tratada segundo os seus méritos depois que deixar este mundo: ou entrará na posse da vida eterna e herdará a felicidade, se seus atos assim lhe fizerem jus, ou então será entregue ao fogo eterno e aos suplícios, se aí a conduzir o peso dos seus crimes; mas chegará o tempo da ressurreição dos mortos, quando este corpo que, “está agora semeado na corrupção se levantará da incorrupção” (1 Cor 15, 42s). A pregação eclesiástica também define que toda alma racional possui livre-arbítrio e vontade, e que para ela há um combate contra o diabo e seus anjos, e contra os seus poderes adversos, que querem carregar a alma com pecados, mas que, se nós nos conduzirmos para uma vida reta e prudente, conseguiremos nos livrar dessa mancha. Portanto, é preciso entender que não estamos submetidos à necessidade a ponto de ser constrangidos de qualquer modo, mesmo quando não o queremos, a fazer o bem, ou o mal. De fato, se assumimos o nosso livre-arbítrio, por mais que certos poderes nos ataquem para nos conduzir ao pecado, e outros para nos ajudar na salvação, nem por isso somos obrigados a agir bem, ou mal (...). A origem da alma, porém, não está claramente definida na pregação apostólica: ou é transmitida pelo sêmen, uma vez que a sua própria existência racional, ou substância, está inserida nas sementes corporais, ou se tem outro início, e se esse princípio é gerado ou não; ou se está nos corpos vindo do exterior, ou não (ORÍGENES. 2012. 52-53).
Essa distinção entre o absolutamente certo (o dogma) e o que circunstancialmente exige uma elucidação maior, determina segundo Orígenes ordens de leitura e interpretação das Escrituras.

Inspiração e Interpretação das Escrituras

Segundo Orígenes a Escritura estabelece o seu próprio método, pois, “o método que se nos mostra impor-se no estudo das Escrituras e da compreensão de seu sentido é este, que já está indicado nas próprias Escrituras[10]. Esse método, que confere unidade entre a lei, os profetas e os apóstolos, entre o velho e novo testamentos, é o próprio Cristo. 

É preciso dizer que a inspiração divina das palavras proféticas e a natureza espiritual da Lei de Moisés resplandeceram com a vinda de Jesus. Antes da vinda de Cristo, a inspiração divina das antigas Escrituras não era fácil de demonstrar com evidência; mas a vinda de Jesus levou aqueles que podiam supor que a Lei e os profetas não eram divinos a constatar com evidência que eles tinham sido escritos com o auxilio de uma graça celeste (ORÍGENES. 2012. 288).

O que se deve levar em consideração é que para Orígenes, a Lei e os Profetas exaustivamente se referem a pessoa histórica, Jesus de Nazaré, como messias e salvador do mundo[11]. Mas não apenas isto, a Lei e os profetas não apenas falam do Cristo, mas o próprio Cristo, antecedendo sua encarnação na história está na Lei e nos profetas, como logos, razão universal que se estabelece na história e na consciência dos homens[12].
Há entretanto, uma gradação entre a compreensão humana e sua aproximação ao sentido espiritual das Escrituras. Assim como o homem é constituído de corpo, alma e espírito, de igual maneira a Escritura é constituída de ordens pelo qual sua interpretação é possível: literal ou imediata, psíquica ou moral e espiritual ou mística. Uma leitura em seu contexto passado, presente e futuro.
É preciso, portanto, inscrever três vezes na própria alma os pensamentos das Escrituras santas: quem é mais simples a fim de que seja edificado pelo que é como que a carne da Escritura – assim chamamos o sentido imediato; o que ascendeu um pouco que o seja pelo que é como que a alma; mas o perfeito, o seja pela lei espiritual, que contêm uma sombra dos bens que hão de vir (...)” (ORÍGENES. 2012. 294).
O sentido corporal das Escrituras compreende o histórico ou literal. O sentido psíquico compreende o moral:
Como exemplo de uma interpretação relacionada a alma, pode-se citar a passagem de Paulo  na primeira Carta aos Coríntios: “Está escrito: não porás focinheira no boi que debulha o grão” (1 Cor 9,9; Dt 25,4). A seguir, para explicar essa norma, ele acrescente: “Deus preocupa-se com os bois? Ou será que ele diz isso só para nós? Para nós é que foi escrito, porque aquele que lavra deve lavrar na esperança, e naquele que debulha o grão tem esperança de obter a sua parte” (1Cor. 9,10)[13].

O sentido espiritual, porém, “é para aquele que pode mostrar quais são as realidades celestes das quais se encontram os símbolos e as sombras no culto dos judeus segunda a carne e quais são os bens que hão de vir e dos quais a Lei possui a sombra”[14].
É certo que para Orígenes, as Escrituras possuem uma natureza e finalidade espiritual. De aproximação dos homens com o Cristo. Esse é o motivo pelo qual ela foi instituída. Contudo, o estabelecimento de tal finalidade também leva em conta a capacidade de compreensão de cada um[15]. Orígenes não é um adepto do puro literalismo, pelo contrário. Considera que há no literalismo aspectos inviáveis em seu aspecto histórico. O mesmo considera no âmbito moral. Entretanto, a descrição de uma estória, assim como a instituição de uma norma moral inviável, apenas insinuam o seu aspecto simbólico, pois, “penso que não se pode duvidar de que tudo isso, exposto numa estória que parece que aconteceu, mas não aconteceu corporalmente, indica certos mistérios”[16].   
Devemos também saber que, uma vez que a finalidade principal é apresentar a coerência das realidades espirituais por meio dos acontecimentos que se produziram e das ações que devem ser feitas, onde a Palavra encontra que os fatos históricos poderiam se harmonizar com as realidades místicas, ela se serviu deles para esconder a quase todos o sentido mais profundo. Onde, pela exposição da lógica das realidades inteligíveis, a ação de tal ou qual, antes descrita, não concordava com ela por causa dos significados mais místicos, a Escritura teceu no relato aquilo que não se passou, ou porque isso não poderia ter se passado, ou porque isso poderia ter acontecido, mas não aconteceu[17].
Dissemos tudo isso para mostrar que a finalidade fixada pelo poder divino que nos deu as santas Escrituras não é compreender somente o que a letra apresenta, pois às vezes o que é tomado à letra não é verdade, e chega a ser incoerente e incompreensível; mas que certas coisas foram entretecidas na trama da história que aconteceu e da legislação que é útil em sentido literal.  Porém, ninguém suspeite, generalizando, que dizemos que nada é história porque alguns acontecimentos não aconteceram, e que nenhuma legislação é para cumprir à letra só porque algumas determinações não são razoáveis, e são impossíveis; e que o que se diz do Salvador não é verdade no seu significado sensível, ou que não se deve cumprir os seus mandamentos e preceitos[18].

Conclusão
O logos na história, estabelece uma tradição, e nesse aspecto uma ortodoxia no que se refere aos ensinamentos de Cristo através da pregação apostólica, e portanto, um método pelo qual toda doutrina pode ser avaliada. Por outro lado, Orígenes não desconsidera a figura do leitor do texto bíblico: sua leitura (compreensão do texto) é própria a uma determinada forma de aproximação histórica, moral ou espiritual. A importância que concede ao leitor é fundamentada. A bíblia é por essência um livro espiritual e apenas pode ser lida adequadamente como tal[19] e em sintonia com a pregação apostólica estabelecida na Tradição. Por outro lado, deve-se considerar que a intensão do leitor que se aproxima das Escrituras, tanto falsifica sua adequada compreensão (estabelecendo uma heresia) quanto é motivada por uma aproximação superficial, e que por isso, ainda sim, é necessária, mas provisória. Há desse modo o estabelecimento de uma hermenêutica dialética, que por outro lado não está destacado de um conhecimento absolutamente certo, ortodoxo. Onde é possível conhecer o Cristo e sua doutrina a partir de suas possibilidades.     

Bibliografia

ORÍGENES. Tratado Sobre os Princípios. Ed. Paulus. 2012.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Ed. Paulus


[1] Diogo Santana é graduando em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Email: diogosantana45@yahoo.com.br.
[2] Rufino...
[3] Essa relação entre o cristianismo e filosofia, entre Jerusalém e a Grécia, constitui um argumento comum na tradição patrística. Dentre eles, Clemente de Alexandria.
[4] De maneira que antes mesmo de Cristo, a verdade, o bem e a felicidade já eram valores buscados pelos homens.
[5] O prólogo do livro de hebreus justifica tal afirmação:  Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho, A quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo. O qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo feito por si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da majestade nas alturas; Feito tanto mais excelente do que os anjos, quanto herdou mais excelente nome do que eles (Cf. Hb. 1. 1-4).

[6] Uma ordem que encarnada na história, torna o final idêntico ao seu início. Sendo assim, o logos entra na história, progredindo até sua plena encarnação em Cristo. Cristo é a consumação da história da salvação, e a partir dele a história sofre uma inflexão em direção ao seu início no Éden, e deste a Deus. Essa inflexão é levada a curso através da pregação apostólica e da tradição a ela. É por isso que a tradição também se vincula a um retorno à origem, que é Deus, e onde todos serão tudo em Deus. Fundamento pelo qual Orígenes irá defender a doutrina da apocatástese, o seu seja da restauração universal de todas as coisas.   
[7] Que Orígenes denomina substância.
[8] O Pastor de Hermas..
[9] O que não justifica, segundo Orígenes que o Filho é precedente ao Pai
[10] ORÍGENES. Tratado Sobre os Princípios. Pág. 294. Ed. Paulus. 2012. 
[11] Elemento característico de toda a teologia paulina.
[12] Desse modo, para Orígenes, todo ser racional, por conta de sua razão, procura o bem e a felicidade. Esse aspecto teleológico da razão outra coisa não é senão o logos divino que lhe exige obediência as leis de Deus.
[13] Pág. 296.
[14] Pág. 296.
[15] Algo que remete consideravelmente a concepção existencial.
[16] Pág. 301.
[17] Pág. 300.
[18] Pág. 304.
[19] A espiritualização do texto é oriunda do esquecimento de seu horizonte histórico. Contudo, para Orígenes determinadas construções históricas do texto bíblico são inverossímeis, deixando claro, uma outra intensão, além da literal.